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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
11/10/2019 11/10/2019 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Netflix
Duração do filme
122 minuto(s)

El Camino
El Camino: A Breaking Bad Film

Dirigido e roteirizado por Vince Gilligan. Com: Aaron Paul, Jesse Plemons, Charles Baker, Matt Jones, Larry Hankin, Tom Bower, Tess Harper, Michael Bofshever, Scott MacArthur, Scott Shepherd, Brendan Sexton III, Kevin Rankin, Krysten Ritter, Bryan Cranston, Jonathan Banks e Robert Forster.

(Atenção: este texto traz spoilers da série e do filme.)


Breaking Bad nunca foi uma série para quem aprecia narrativas de redenção. Habitado por personagens cujas trajetórias seguiam em mão única de um ponto de (relativa) harmonia até a degradação completa, o universo concebido por Vince Gilligan podia até prometer algum respiro de alívio aqui e ali, mas estes normalmente eram seguidos por mergulhos ainda mais profundos no caos e na dor. Esta lógica se manteve em sua série-prequel/continuação, Better Call Saul, que também nos apresentou a um homem falho, mas essencialmente bom, que a cada nova temporada se aproxima do advogado sem escrúpulos que não veria mais problemas em sugerir assassinato como uma solução para certos inconvenientes.

O que nos traz a El Camino, que, escrito e dirigido por Gilligan, se propõe a acompanhar o destino pós-Breaking Bad de um dos poucos personagens que, apesar de tudo que viveu, conseguiu manter viva a própria humanidade: Jesse Pinkman (Paul), o ex-aluno de Walter White (Cranston) que, depois de acompanhá-lo até o figurativo fundo do poço, acabou pagando por seus pecados ao passar meses aprisionado em um quase literal. Libertado pelo antigo parceiro em um derradeiro ato de decência, Jesse se vê física, psicológica e emocionalmente demolido em uma Albuquerque tomada por policiais que querem capturá-lo – e o filme irá acompanhar seus esforços para deixar a cidade e – quem sabe – ganhar uma nova oportunidade de construir uma vida livre de demônios. Ao menos, externos; os internos provavelmente o acompanharão até o fim.

Com um título que remete ao carro no qual escapa ao fim da série, mas também à sua nova jornada (Breaking Bad sempre foi excepcional em sua escolha de títulos – como comprova seu último episódio, “FeLiNa”), El Camino não ignora o dano psíquico provocado pelo longo período de isolamento e brutalidade vivido pelo protagonista, que exibe sintomas claros de estresse pós-traumático ao se ver livre. Inicialmente auxiliado pelos amigos Skinny Pete (Baker) e Badger (Jones), que mantêm sua eficaz dinâmica de dueto cômico e oferecem um alívio ao peso da narrativa, Jesse sabe ter que agir com rapidez, decidindo arriscar-se ao se lembrar de uma informação importante relacionada ao seu antigo carcereiro e algoz Todd Alquist (Plemons).

Adotando uma estrutura cronológica não-linear que alterna os esforços de Jesse com flashbacks que ora trazem informações importantes para a trama, ora expandem nossa compreensão sobre suas ligações afetivas e antigas influências (como sua tendência a enxergar e seguir figuras paternas como Walt e Mike (Banks)), o longa já revela sua estratégia emocional ao incluir quase imediatamente uma cena em que Jesse e Mike se encontram à beira do mesmo rio que servirá como cenário para a morte deste último e que Gilligan utiliza como uma âncora trágica relacionada a Breaking Bad, como uma introdução ao arco que Jesse atravessará em El Camino e como uma metáfora de possível renascimento ao conferir destaque ao movimento das águas diante da dupla.

O investimento em flashbacks, por sinal, funciona como uma oportunidade óbvia (e bem-vinda) de recuperar personagens que não conseguiram chegar respirando ao final da série, mas que desempenharam papéis importantes na jornada do protagonista – e, entre estes, o que ganha mais tempo de tela nesta produção é Todd, cuja psicopatia se torna ainda mais clara (e assustadora) graças às suas ações, mas também à excelente composição de Jesse Plemons, cujo tom de voz suave e modos quase infantis ressaltam, por contraste, o horror representado por seu personagem. A forma como toca Jesse, quase com carinho, e sua insistência em conversar sobre trivialidades em situações grotescas são sinais claros de uma personalidade sem qualquer capacidade de empatia, transformando suas tentativas de exibir alguma humanidade em um comportamento artificial que o deixa mais apavorante (e o plano no qual surge cantando “Sharing the Night Together” no carro é um dos melhores momentos que Gilligan já criou). Enquanto isso, Charles Baker e Matt Jones ganham a chance de exibir um lado afetuoso de Skinny Pete e Badger, ainda que estes se expressem de um modo tipicamente desajeitado (“You’re my hero and shit”, diz Skinny Pete, indicando também como Gilligan é talentoso ao criar vozes distintas para cada personagem).

Porém, o que mantém El Camino coeso e intenso é a performance de Aaron Paul, um ator brilhante – talvez um dos melhores de sua geração – que aqui oferece uma interpretação quase totalmente silenciosa e reativa, evocando toda a complexidade e intensidade dos sentimentos de Jesse apenas através de suas expressões corporais e faciais. É fascinante, por exemplo, testemunhar sua postura encurvada, com os olhos para baixo, quando diante de Todd e sua força crescente ao longo da narrativa, quando seu olhar se torna desafiador e sua voz ganha um tom decidido e firme. Além disso, Paul compreende a magnitude das crueldades sofridas por Jesse e como é fundamental mantê-las vivas em sua interpretação, já que algo como aquilo jamais seria superado em poucos dias (ou em muitos anos).

Pincelando a obra com o senso de humor particular e inesperado de Breaking Bad e Better Call Saul, que com frequência vem associado a algo pavoroso, o roteiro de Vince Gilligan também é hábil ao povoar a trama com personagens que agem com um mínimo de inteligência, de Skinny Pete aos dois homens que Jesse encontra em um apartamento, o que torna os percalços enfrentados pelo rapaz ainda mais interessantes. Do mesmo modo, Gilligan demonstra curiosidade até pelas figuras mais passageiras, o que traz verossimilhança e vida ao universo que cria – e até mesmo as strippers que vemos rapidamente em uma cena têm a chance de expressar seu cansaço e o senso de camaradagem umas com as outras. Para completar, o realizador oferece a Robert Forster a possibilidade de explorar um pouco mais seu misterioso personagem – algo que o ator aproveita ao máximo naquela que acabou sendo sua performance final (por uma destas coincidências da vida, ele faleceu no dia em que El Camino foi lançado).

Mas Gilligan não merece aplausos apenas como roteirista; sua direção mostra-se igualmente segura e elegante ao mesmo tempo em que resgata convenções visuais da série (como os time lapses – aquele envolvendo Jesse enquanto revista um apartamento é meu favorito -, os planos em que a câmera é situada em espaços nos quais os personagens colocam algo (ou dos quais retiram) e, claro, as composições que trazem algum objeto ou personagem próximo à câmera em um canto e um campo aberto e distante no outro, num contraponto visualmente estimulante). Além disso, há os inspirados raccords que tornam a montagem mais fluida, como o corte que vai de Jesse no chuveiro a outro no qual é atingido pelo jato de uma mangueira ou aquele em que, depois de vermos um carro arrancando, o ponto de vista subjetivo de outro automóvel em um game passa a ocupar a tela. Já a trilha de Dave Porter respeita o estilo pré-estabelecido na série, com temas que investem em cordas e percussão, enquanto o esquema de cores do design de produção relembra o uso simbólico do amarelo e do vermelho, significantes do universo de violência inicial de Jesse em Breaking Bad.

Aliás, já que mencionei símbolos, é importante constatar como Gilligan retoma certos elementos importantes do original, desde a tarântula que marca um episódio trágico (e volta, de modo apropriado, no apartamento de Todd) até o besouro que Jesse ergue com delicadeza e que faz uma rima com outra passagem similar da série. Da mesma forma, o diretor volta a colocar em prática algo que aprendeu com a trilogia O Poderoso Chefão, na qual cada morte é concebida com alguma idiossincrasia (pensem na perna de Apollonia para fora do carro ou nos óculos de Moe Greene); e aqui temos, por exemplo, uma pessoa caindo em uma máquina de salgadinhos ou o bolso de uma jaqueta pegando fogo.

Coeso em seus aspectos temáticos ao adotar o flashback como recurso de memória, mas também de novas informações, El Camino reflete nesta estrutura a jornada psicológica de Jesse Pinkman, que de certa maneira precisa retornar e reconhecer seu passado para poder se libertar e seguir adiante depois de uma vida inteira preso aos mesmos vícios (químicos e comportamentais) e equívocos. E, assim, quando comparamos sua última imagem em Breaking Bad e neste filme, constatamos como o desespero aliviado e sofrido parece ter dado lugar a um homem capaz de encontrar, em seu futuro, a paz e a serenidade que sua natureza gentil há muito fazia por merecer.

12 de Outubro de 2019

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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