Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
02/10/2014 | 03/10/2014 | 5 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Fox Film |
Dirigido por David Fincher. Roteiro de Gillian Flynn. Com: Ben Affleck, Rosamund Pike, Carrie Coon, Kim Dickens, Tyler Perry, Neil Patrick Harris, Patrick Fugit, David Clennon, Lisa Banes, Missi Pyle, Casey Wilson, Sela Ward, Scoot McNairy.
O cineasta norte-americano David Fincher sempre se sai muito melhor quando está lidando com personagens extremamente racionais envolvidos em situações que exigem estratégias rápidas e desesperadas – e se Clube da Luta, Seven, Vidas em Jogo, Zodíaco, A Rede Social e Os Homens que Não Amavam as Mulheres brilham justamente por isto, O Curioso Caso de Benjamin Button naufraga ao depender de Fincher para estabelecer algo que este parece incapaz de criar: sentimentalismo barato. Assim, quando Garota Exemplar já abre com um plano que trazia o personagem de Ben Affleck acariciando a cabeça da esposa para então, em off, dizer que gostaria de partir seu crânio a fim de encontrar algumas respostas, fica óbvio que provavelmente não estamos diante de um malfadado água-com-açúcar.
Escrito por Gillian Flynn a partir de seu próprio livro, o roteiro acompanha o escritor fracassado Nick Dunne (Affleck), que, casado com a bela e rica Amy (Pike), descobre, no dia de seu aniversário de cinco anos de casamento, que a esposa desapareceu. Acionada, a polícia local aos poucos começa a suspeitar que o sujeito seja o responsável pelo sumiço de Amy – uma ideia que se torna mais forte a partir do comportamento casual de Nick diante das graves circunstâncias. Apoiado pela irmã Margo (Coon), ele aos poucos percebe a seriedade da situação enquanto a detetive Rhonda (Dickens) desencava segredos do casamento dos Dunne.
E basicamente devo parar de discutir a trama de Garota Exemplar aqui, já que um dos maiores prazeres do filme reside em acompanhar suas revelações e reviravoltas. Ainda assim, é seguro dizer que a estrutura concebida por Flynn é intrigante ao oferecer dois pontos de vista para os principais acontecimentos da narrativa: o de Nick, que acompanhamos de maneira objetiva, e o de Amy, aos quais somos apresentados através da narração de passagens de seu diário pessoal e que surgem na voz de femme fatale, sussurrada e segura, de Rosamund Pike – e que se contrapõe à performance de Ben Affleck, que constrói Nick como um homem que, sob a postura arrogante, esconde uma personalidade insegura que nem sempre se manifesta da melhor maneira a fim de disfarçar seu desconforto.
No entanto, mesmo que o protagonista seja obviamente um indivíduo falho, o fato é que Affleck nos faz gostar dele, o que é fundamental para que o filme funcione, já que torcemos constantemente para que Nick se revele inocente embora as circunstâncias do desaparecimento de Amy se revelem cada vez mais incriminadoras. Além disso, à medida em que o longa nos apresenta à versão de sua esposa, somos confrontados por um Nick nada adorável, o que nos leva a questionar sua postura de garotão divertido e bem humorado e a compreender a tristeza crescente de sua companheira.
Fortalecido pelos contrastes entre estas duas versões, Garota Exemplar acaba se tornando um exercício que, em momentos, remete a obras como Rashômon – algo ressaltado pela brilhante montagem de Kirk Baxter, que não só salta com fluidez entre estas narrativas individuais como ainda encontra o equilíbrio ideal entre o ritmo tenso de um thriller e a necessidade de desenvolver com cuidado a história. (Conseguindo, no processo, incluir cortes fabulosos como aquele que vai do beijo de Nick e Amy ao instante em que o sujeito tem a boca varrida para coleta de DNA.) Já o design de produção de Donald Graham Burt faz um excelente contraponto entre os espaços vastos, mas com pouco calor humano, da casa dos Dunne e o pequeno mas receptivo lar de sua irmã, acertando também ao criar o diário de Amy com uma caligrafia excessivamente metódica que revela muito de sua dona. Para finalizar, a trilha de Trent Reznor e Atticus Ross é evocativa sem depender de temas óbvios, complementando a atmosfera de tensão sem tentar criá-la sozinha.
Aproveitando de maneira inteligente a trama para fazer um comentário atual e relevante sobre a maneira como o jornalismo vem se confundindo com o entretenimento, abandonando qualquer traço de responsabilidade desde que as “informações” publicadas rendam audiência ou sirvam a algum outro propósito particular, o filme ilustra como a mídia é capaz de capturar um incidente que dura meio segundo (como um sorriso automático, por exemplo) e transformá-lo em algo infinitamente maior, criando uma narrativa sombria onde havia apenas um reflexo distraído. Assumindo os postos de acusador, júri, juiz e carrasco, este “jornalismo” não teme assassinar reputações ou destruir vidas desde que isso se converta em pageviews e dinheiro – e é revelador como, em vez de tentar preparar o caso de Nick do ponto de vista jurídico, o bom advogado Tanner Bolt (Perry, surpreendente pela primeira vez na carreira) percebe ser muito mais importante montar uma estratégia na mídia.
Complementado por atuações de um elenco que se mostra uniformemente brilhante, Garota Exemplar traz Affleck e Pike em performances que são apostas quase garantidas em premiações no fim do ano – especialmente esta última -, ao passo que Neil Patrick Harris, Kim Dickens, Carrie Coon, Patrick Fugit e o cada vez melhor Scoot McNairy exploram ao máximo seus papeis de apoio.
Mais um tiro certeiro de David Fincher, o filme ainda comprova a velha máxima da montagem ao demonstrar que, em filmes estruturados com cuidado, o espectador só compreenderá completamente o significado do primeiro plano de um longa ao assistir ao último. E, neste caso, a jornada é tão recompensadora quanto a constatação de que, no fundo, não sabíamos mesmo de nada.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival do Rio 2014.
29 de Setembro de 2014