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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
28/10/2010 01/01/1970 5 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
94 minuto(s)

Um Dia na Vida
Um Dia na Vida

Dirigido por Eduardo Coutinho.

A sessão de Um Dia na Vida, um “material de pesquisa” coletado pelo mestre Eduardo Coutinho, estabeleceu-se como algo histórico na última Mostra de São Paulo por provavelmente ter sido a primeira e última vez que foi apresentada ao público: consistindo de 90 minutos extraídos de 19 horas de gravações ininterruptas de todos os canais da tevê aberta nacional, o documentário certamente enfrentaria problemas incontornáveis de direitos autorais caso o diretor tentasse lançá-lo comercialmente – e isto é uma pena, já que o trabalho escancara diversos elementos curiosos sobre a programação da televisão brasileira apenas ao criar uma justaposição de seus programas e projetá-los na tela grande.


A primeira constatação óbvia, aliás, diz respeito aos perfis perseguidos pelas emissoras ao longo do dia: logo pela manhã, por exemplo, o foco principal é o público feminino e, em menor escala, o infantil. Tratando as mulheres (especialmente as donas-de-casa) como verdadeiras débeis mentais, estas produções abordam assuntos fúteis por essência, descambando para propagandas e “matérias” sobre estética que comumente são baseadas na mais pura desinformação (eufemismo para “estupidez”). Em certo instante, por exemplo, vemos uma “especialista” afirmar que pessoas com tipos sangüíneos diferentes apresentam características comportamentais distintas que podem ser reguladas por alimentos específicos, enquanto em outro programa vemos um “médico” afirmar que os suplementos de cálcio que está anunciando são capazes de rejuvenescer as clientes em questão de poucos meses.

Se há alguns anos o horário diurno (especialmente o matutino) se preocupava em jamais trazer qualquer tipo de imagem que pudesse se revelar chocante para o público infantil, agora isto obviamente já não faz mais parte da lista de prioridades das emissoras. Assim, já ao meio-dia (Um Dia na Vida traz as imagens em ordem cronológica, iniciando às 6 da manhã) podemos acompanhar informações detalhadas sobre um tiroteio que resultou em um garoto sendo baleado na cabeça – e já no fim da tarde, o apresentador Datena narra a tentativa feita pelos paramédicos para ressuscitar outra vítima de arma de fogo (um procedimento capturado pela câmera em um helicóptero e exposto na tela sem qualquer pudor). E o que dizer do momento inacreditável em que Wagner Montes, comandando outra produção do estilo mundo-cão, praticamente incentiva a população a reagir a assaltos e explica, um pouco depois, que bater em mulher é “covardia”, já que basta “segurá-las pelo braço quando ficam nervosas”?

Volto a ressaltar que estes exemplos surgem na programação diurna, quando crianças de todas as idades se encontram diante da televisão – e não menos revoltante é perceber como um programa religioso, que traz a classificação indicativa “livre”, conta com um “pastor” que, em seu discurso odioso, estimula a intolerância religiosa sem o menor pudor, já contribuindo para criar futuros fundamentalistas. Aliás, a presença constante de projetos de caráter religioso na tevê brasileira em todos os horários é algo assustador – e que se prova ainda mais chocante quando notamos que todos eles exploram a fé popular com intuitos comerciais enquanto, em maior ou menor escala, incentivam o preconceito e o ódio. Em outras palavras: o sexo, ato mais belo entre dois seres humanos, leva a uma classificação indicativa pesada, mas discursos repugnantes com potencial para influenciar mentes ainda em formação são permitidos sem o menor problema em nossas tevês.

Porém, Um Dia na Vida leva a reflexões também sobre linguagem e estética do audiovisual ao expor os programas em uma telona diante de um público que não está dividindo sua atenção com qualquer outra tarefa – e, com isso, podemos perceber facilmente a fragilidade da tevê brasileira contemporânea como forma artística nestes dois quesitos (todas as novelas, brasileiras ou mexicanas, se parecem, por exemplo, além de contarem com diálogos e atuações igualmente risíveis). Não é à toa, diga-se de passagem, que o público que lotou a sessão riu praticamente durante toda a projeção – e, com a exceção de Tom & Jerry e Chaves, nenhuma das produções vista nestes 90 minutos tinha a intenção de provocar esta reação (meu momento favorito ocorreu quando um programa se referiu à Fernanda Young como “intelectual”, o que também provocou gargalhadas generalizadas na sala).

Explorando sem o menor pudor a miséria alheia e o sonho dos “15 minutos de fama” de boa parte da população, várias produções também se encarregam de levar para a frente das câmeras pessoas com sofrimentos reais que, lamentavelmente, se submetem de bom grado à própria humilhação pública (é curioso notar, por exemplo, como todas as mulheres que ganham cirurgias plásticas no programa Márcia acabam ficando idênticas à apresentadora) – e isto para não mencionar as garotas que exibem os corpos seminus ao longo de todo o dia.

O mais chocante é que, após a sessão, Eduardo Coutinho esclareceu que não fez questão alguma de pinçar o que havia de pior nas 19 horas que gravou e que, ao contrário, eliminou vários momentos que considerou pavorosos demais para incluir no material final. Com isso, o diretor, embora não tenha criado propriamente um filme (tanto que não darei cotação alguma ao “documentário” por ser impossível avaliá-lo como obra isolada), certamente concebeu algo que, por ser representativo do que recebemos diariamente em nossas tevês, não só comprova a péssima qualidade do que as emissoras vêm produzindo (e sua inadequação ao público infantil), como ainda nos leva a fazer uma importante pergunta: por que ainda hoje as pessoas perdem tempo assistindo à tevê aberta no Brasil?

Confesso ter medo de descobrir a resposta.

30 de Outubro de 2010

Observação: esta crítica foi originalmente publicada como parte da cobertura da Mostra Internacional de Cinema de SP 2010.

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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