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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
12/11/2010 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
107 minuto(s)

Direção

Asif Kapadia

Roteiro

Manish Pandey

Produção

Manish Pandey

Fotografia

Jake Polonsky

Música

Antonio Pinto

Montagem

Chris King

Senna
Senna

Dirigido por Asif Kapadia.

[Ayrton Senna] é a única coisa que o Brasil tem de bom”, declara, em certo momento, uma fã do piloto em uma entrevista de 1994 resgatada por este belo documentário sobre a vida do ícone brasileiro. Num contexto histórico que trazia o povo frustrado em função do processo de impeachment de seu primeiro presidente eleito democraticamente após a tenebrosa ditadura e numa economia em crise que só via a distância entre ricos e pobres aumentar, é natural que um sujeito talentoso, carismático e com cara de bom moço (e católico, ainda por cima!) despertasse um forte sentimento de orgulho em uma população carente de heróis – e que voltaria a esta carência de forma trágica no dia primeiro de maio daquele triste ano.


Dirigido pelo inglês Asif Kapadia, Senna emprega imagens de arquivo, vídeos caseiros e depoimentos raros do piloto e das pessoas à sua volta para reconstruir de maneira intensa e abrangente a trajetória de Ayrton desde seu início no kart até o momento em que seu carro descolou da pista ao fazer a curva Tamburello em Ímola. Com isso, podemos testemunhar, por exemplo, a preocupação de seus pais quando, aos 24 anos, é contratado pela Toleman – e ver sua chorosa mãe desejando sorte ao filho e manifestando temor por sua segurança é algo que toca justamente por conhecermos o desfecho da história e sabermos que seus receios maternos eram mais do que justificados.

Produzido com apoio do Instituto Ayrton Senna, o longa obviamente traça um retrato bastante positivo do biografado – sem, contudo, tornar-se uma hagiografia: visto não como santo nem como demônio, o piloto surge simplesmente como um homem de bom caráter que, mesmo ocasionalmente demonstrando medo diante dos riscos da profissão, não conseguia deixar de atender ao chamado de sua paixão pelo esporte. “É como uma droga. Você fica buscando [a sensação de euforia] o tempo todo”, ele explica em certo momento, demonstrando reconhecer plenamente sua obsessão pela velocidade e, claro, pela vitória – o que o leva até mesmo a atirar propositalmente o eterno rival Alain Prost para fora da pista, em 1990, garantindo o título através da manobra – uma atitude nada esportiva que claramente incomoda seu próprio autor, que tem seu conflito interno exposto de maneira inconteste pelas expressões faciais e corporais reveladas nas imagens obtidas por Kapadia.

A briga com Prost, aliás, estabelece-se como o aspecto mais fascinante do documentário: ilustrando a natureza política e pragmática do piloto francês através de suas entrevistas e imagens de arquivo, o filme escancara a tensão entre ele e o brasileiro em momentos reveladores que trazem ambos (recém-anunciados como parceiros de equipe) trocando piadas e elogios artificiais – uma postura pública que logo cederia lugar a brigas de bastidores, à divisão da McLaren em dois “campos” e que culminaria no famoso incidente que determinou o título mundial em 1989, quando Prost atingiu Senna intencionalmente a fim de levá-lo a abandonar a prova e, assim, ceder-lhe o título. E é aí que entra o estranho Jean-Marie Balestre, então presidente da Federação Internacional de Automobilismo: francês como Prost e com jeitão de mafioso, o sujeito foi responsável pela desclassificação de Ayrton depois que o brasileiro milagrosamente voltou à corrida, mesmo faltando apenas cinco voltas, vencendo-a de forma espetacular – uma vitória anulada por uma leitura controversa do regulamento feita por Balestre, que ainda insistiu em suspender o piloto por seis meses (e foi com estas recordações em mente que, no ano seguinte, o brasileiro jogaria Prost para fora da pista).

Piloto inquestionavelmente talentoso (especialmente sob chuva), Senna tem, aliás, alguns de seus momentos mais espetaculares recapturados pelo documentário, desde seu início na Fórmula 1, quando rapidamente se tornou competitivo, até a conquista de seu primeiro título em uma prova na qual errou na largada e caiu para a 14ª. posição, fazendo uma memorável corrida de recuperação que culminou em sua vitória. Neste aspecto, vale dizer, Senna traz um depoimento esclarecedor do brasileiro, que discute sua imersão completa na lógica da corrida, chegando a dirigir como se estivesse “em outra dimensão”, numa espécie de transe (uma experiência mais comum em relatos de grandes artistas – e o brasileiro não deixava de ser um).

Mas a velocidade não era a única obsessão de Ayrton: Deus disputava com a Fórmula 1 as atenções do piloto. Referindo-se constantemente às vontades divinas ao comentar suas provas, Senna exibia uma fé tão fervorosa que, em certo instante, Prost comenta temer que o brasileiro se arrisque (e, conseqüentemente, os companheiros de profissão) por julgar-se invencível e protegido por seu Deus – algo que o outro descarta numa entrevista sem aparentemente perceber a ironia do rival. O Ayrton Senna revelado pelo longa, aliás, é um sujeito impossivelmente sério que parece relaxar apenas quando feliz por uma vitória – e mesmo seus famosos relacionamentos com Xuxa e Adriane Galisteu surgem como distrações às quais ele parece não dedicar atenção particular.

Inteligente ao empregar como narração as entrevistas concedidas por repórteres especializados em automobilismo e os depoimentos do próprio personagem-título, Senna jamais perde tempo com “cabeças falantes”, fugindo da estrutura convencional do documentário e tornando sua narrativa bem mais dinâmica e interessante. Beneficiado também por um trabalho de pesquisa impecável, a produção se revela sempre instigante – especialmente ao trazer imagens dos bastidores da Fórmula 1, escancarando, por exemplo, a expressão de desconforto de Prost ao ser confrontado por Piquet em uma reunião promovida pelos dirigentes da FIA antes de uma prova no Japão. Da mesma maneira, ao enfocar a vitória de Senna em Interlagos, em 1991, o filme expõe as fortes dores no ombro experimentadas por ele após a disputa, já que passara várias voltas conduzindo um carro preso à sexta marcha – e testemunhar seu esforço para erguer o troféu e a bandeira brasileira é algo que ganha um contexto novo e comovente quando nos lembramos de que, segundos antes, ele mal conseguira erguer os braços para abraçar o pai.

O longa vai além, porém, ao oferecer um olhar também técnico sobre o esporte, expondo a gravidade de se colocar uma pole no lado sujo da pista (algo que a FIA de Balestre fez com Senna em 1990, resultando no já citado incidente com Prost) e ao discutir o desequilíbrio provocado pelos carros da Williams em 1992, que, dotados de um sistema computadorizado de balanceamento, levaram até mesmo o desastrado Nigel Mansell a conquistar seu único título na categoria – e foi justamente ao exigir a remoção deste tipo de tecnologia no ano seguinte que a FIA, sem pensar na segurança dos pilotos, criou carros instáveis que passaram a protagonizar diversos acidentes menores já nos dois primeiros circuitos do ano. É neste momento, aponta o filme, que Ayrton realmente demonstra sua personalidade forte ao questionar as ações da federação, comprovando que, caso tivesse vivido para se aposentar como piloto, um cargo importante na FIA poderia representar um futuro provável.

Infelizmente, como todos sabemos, não foi isto que ocorreu – e Senna se torna sombrio e triste ao enfocar com detalhes os acontecimentos do fim-de-semana que culminou na prova de San Marino e que trouxe acidentes graves com Rubens Barrichello (que escapou com ferimentos leves) e, claro, com Roland Ratzenberger, que se tornou a primeira fatalidade na Fórmula 1 em 12 anos. Aliás, o filme traz um momento particularmente triste ao mostrar Ayrton acompanhando os primeiros-socorros prestados ao companheiro austríaco, saindo de perto do monitor com uma expressão de profunda angústia ao perceber que estava testemunhando o resgate de um cadáver. A partir daí, o piloto brasileiro se torna uma figura tensa e introspectiva, deixando claro, para o espectador, estar contendo até mesmo o impulso de se negar a correr no dia seguinte.

Um impulso que, tragicamente, ele sufocaria.

Deste instante em diante, Senna se converte numa obra de terror à medida que a largada se aproxima e o piloto, retraído e incomodado, entra no carro no qual morreria minutos depois ao subitamente sair da pista na traiçoeira curva Tamburello – e o filme tortura o espectador (sem, no entanto, ser sensacionalista) ao mostrar a última volta de Ayrton a partir da câmera localizada em seu carro, colocando o público num hipotético banco de passageiro de um veículo que sabe estar prestes a ser destruído.

Emocionando ao empregar uma série de flashbacks estratégicos que trazem figuras importantes da vida de Senna em seu velório e em momentos felizes de sua trajetória, o documentário converte-se como um tributo tocante a um homem falho, mas admirável. Um indivíduo que, sempre determinado a superar os próprios medos, sucumbiu ao forçar-se a fazer algo que reconhecia como terrivelmente perigoso – e ouvi-lo declarar ainda estar “na metade da vida” (quando, de fato, estava a poucas semanas de perdê-la) é algo que apenas ressalta o desperdício de seu talento e de sua juventude.

Em sua morte, Senna converteu-se em uma espécie de herói aos olhos de seus compatriotas. Isso, no entanto, é um consolo mínimo quando percebemos que, tivesse a federação responsável por sua segurança agido para protegê-lo, ele hoje provavelmente seria “apenas” um ídolo palpável e falho como Pelé ou Zico, mas certamente feliz por ter tido a oportunidade de crescer como indivíduo e de cumprir seu papel no planeta não só como piloto, mas como pai, marido e homem.

12 de Novembro de 2010

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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