Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
18/02/2005 | 03/09/2004 | 4 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
125 minuto(s) |
Dirigido por Alejandro Amenábar. Com: Javier Bardem, Belén Rueda, Celso Bugallo, Lola Dueñas, Mabel Rivera, Tamar Novas, Clara Segura, Francesc Garrido, José María Pou.
Rico, belo e famoso, o ator norte-americano Christopher Reeve tornou-se paraplégico aos 42 anos depois de cair de um cavalo, em 1995, passando os 9 anos seguintes promovendo uma série de campanhas com o objetivo de alcançar uma cura para a deficiência, até morrer de insuficiência cardíaca no final de 2004. Já o espanhol Ramón Sampedro, que perdeu os movimentos do corpo depois de um salto mal calculado no mar aos 26 anos de idade, passou as três décadas seguintes lutando na justiça pelo direito de se matar. De um lado, uma lição de otimismo; do outro, a determinação inabalável de abandonar uma vida de impossibilidades físicas. A pergunta é: qual dos dois homens estava `certo`?
É claro que a resposta mais fácil e óbvia seria aplaudir Reeve e condenar Sampedro, mas isto não significa que ela seria a correta. Afinal, parafraseando um dos argumentos deste último, quem somos nós para julgarmos o desejo de alguém naquelas condições de viver ou morrer? Sampedro, cuja causa é retratada neste Mar Adentro, era amado por sua família, que cuidava do ex-marinheiro com imenso carinho, mas, ainda assim, aquela existência de imobilidade representava um sofrimento insuportável para o sujeito – um sentimento que nem terapia ou anti-depressivos foram capazes de eliminar. Aliás, o próprio Ramón parecia lamentar a idéia fixa de morte – e, caso pudesse escolher, obviamente optaria por aceitar o próprio infortúnio e, como Reeve, adotar uma postura positiva e alegre. Infelizmente, o fato é que, para Sampedro, viver daquela maneira não valia a pena.
`Para Sampedro`. O destaque para estas duas palavras é fundamental para a compreensão das propostas narrativa, política e social de Mar Adentro: em nenhum momento, o filme e seu protagonista defendem a eutanásia como uma solução desejável (ou aceitável) para as vítimas de doenças degenerativas ou de paraplegia: `Quem está falando de tetraplégicos?`, protesta Sampedro, completando: `Estou falando de mim!`. Sim, há muitas pessoas em condições semelhantes que levam vidas produtivas e felizes – e é obrigação daqueles que as cercam de provar que isto é possível. No entanto, a diversidade de temperamentos converte os seres humanos em incógnitas e, portanto, há também aqueles que simplesmente não se adaptam (nem desejam isto) à nova realidade. Nestes casos, a delicada questão que se apresenta é: nós temos o direito de obrigá-los a viver?
Ramón Sampedro não acreditava em vida após a morte e, assim, não sonhava em voltar a andar no `Paraíso`; seu único desejo era abandonar o inferno em que se transformara seu cotidiano. Como seria de se esperar, não faltavam pessoas para tentar convencê-lo de que, paraplégico ou não, continuar a viver era uma benção. Porém, nenhuma delas podia rebater a lógica desesperançada do sujeito: depois que aquela conversa se encerrasse, todos poderiam levantar da cadeira e ir para casa brincar com os filhos ou passear pela praia, enquanto Sampedro permaneceria preso ao próprio corpo, sendo obrigado a reviver o passado em sua mente ou a imaginar aventuras que nunca viveria. É claro que, como seres racionais, temos dificuldades em aceitar que alguém possa querer acabar com a própria vida, mas isto não significa que, como Sociedade, tenhamos a prerrogativa de determinar a manutenção, contra a própria vontade, da existência sofrida de um indivíduo.
Pelo que escrevi até agora, percebo que estou passando a impressão de defender a eutanásia – e, no entanto, confesso não ter certeza de ser este o caso. Por um lado, sei que me sentiria terrivelmente mal em saber que alguém com esclerose múltipla (cito este exemplo por ter perdido um tio para a doença) foi obrigado a sofrer – contra a própria vontade - toda a terrível fase final da moléstia apenas porque esta era a opção mais confortável para seus parentes e amigos. Em contrapartida, não posso deixar de pensar que, no mínimo, Sampedro, cujas poesias renderam dois livros, negou seu talento à Humanidade, num flagrante desperdício de sua sensibilidade singular. Mas se ele não enxergava a questão desta maneira, o que fazer?
Vivido por Javier Bardem de forma impecável, Sampedro surge, em Mar Adentro, como um indivíduo tridimensional, e não como um simples porta-voz daqueles que defendem a eutanásia. Sendo obrigado a utilizar apenas suas expressões faciais para trazer o espectador para o mundo particular de seu personagem, Bardem comprova, mais uma vez, ser um dos atores mais talentosos de sua geração – e não só por ter `envelhecido` duas décadas para o filme, mas, principalmente, por transmitir uma infinidade de significados através do sorriso triste de Ramón e de seu olhar repleto de doçura e compreensão (que não esconde, no entanto, sua frustração por ser obrigado a permanecer vivo).
Da mesma forma, o cineasta Alejandro Amenábar (que também co-escreveu o roteiro ao lado de Mateo Gil) exibe sua versatilidade ao comandar um drama intimista como este depois de dirigir três longas que oscilavam entre o horror e o suspense: os ótimos Morte ao Vivo, Preso na Escuridão e Os Outros. Tentando escapar do melodrama (embora falhe em algumas ocasiões), Amenábar acerta em cheio ao incluir, ao longo da narrativa, momentos inspirados de um humor sarcástico e irônico mais do que apropriado à personalidade similar de seu protagonista. Além disso, poucos diretores conseguiriam ilustrar de forma tão divertida (e sutil) a diferença absurda entre as posturas ideológicas e religiosas de Sampedro e do padre que o visita – que, no filme, são obrigados a discutir à distância, já que a cadeira de rodas do sacerdote não pôde passar pela escadaria que leva ao quarto do outro.
Por outro lado, Mar Adentro erra feio nesta mesma cena ao fugir da discussão sobre a eutanásia e recair em um jogo óbvio de acusações ao passado da Igreja Católica – que, nestas circunstâncias específicas, simplesmente não vem ao caso. E, como já citei anteriormente, Amenábar entrega-se ao sentimentalismo barato e ao clichê em alguns momentos, como ao mostrar uma pessoa correndo atrás de uma ambulância e ao incluir a evocativa e maravilhosa ária Nessun Dorma (da ópera Turandot, de Puccini) como pano de fundo de uma seqüência de sonho (que, excetuando-se a música – neste caso, maniqueísta -, é belíssima).
Em uma questão complexa e dolorosa como a eutanásia, não há posições que possam ser facilmente defendidas: todos os lados resultam em amargura para alguém. É claro que seria infinitamente mais fácil (e cômodo) se todos os paraplégicos e portadores de doenças degenerativas incuráveis jamais pensassem em `desistir` (um verbo injusto numa situação como esta, eu sei), pois isto encerraria a questão sem ofender os valores de ninguém.
No final das contas, Mar Adentro, assim como a própria vida de Ramón Sampedro, funciona principalmente para nos forçar a uma análise interior que pode revelar-se impiedosa e surpreendente. O que descobri sobre mim mesmo? Que sou infinitamente grato por meu tio jamais ter pedido que o livrássemos de seu sofrimento. Em suma: descobri, entristecido, meu egoísmo.
* Ao meu tio Quinzinho, cuja determinação permaneceu viva mesmo quando seu corpo já deixara de responder.
17 de Fevereiro de 2005