Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
18/10/2003 | 01/04/2005 | 5 / 5 | 1 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
72 minuto(s) |
Dirigido por Marcelo Masagão.
Depois de estrear no cinema com o fascinante Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos, em 1999, Marcelo Masagão realizou, em 2001, o não menos brilhante documentário Nem Gravata, Nem Honra - que, infelizmente, recebeu uma distribuição ainda pior do que a de seu primeiro longa. Assim, só nos resta torcer para que esta sua mais recente obra-prima, 1,99 - Um Supermercado que Vende Palavras, consiga chegar ao público, pois aqui está um trabalho que não deveria ser visto apenas por meia dúzia de cinéfilos, mas que merecia ser adotado como experiência obrigatória em todos os colégios e faculdades do país.
Provando mais uma vez ser um mestre em combinar imagens e textos impactantes, Masagão criou um filme que desafia as definições habituais: sem poder ser considerado exatamente como um documentário, já que, além de utilizar atores, não retrata fatos, mas idéias, 1,99... tampouco se revela como uma obra de ficção - suas `conclusões` são acuradas demais para isso. Funcionando como uma ácida análise sobre uma sociedade totalmente devotada ao consumo, o longa se passa em um supermercado (que poderia facilmente ser convertido em uma instalação de arte) especializado na venda de conceitos: planejado como um ambiente estéril, frio e impessoal, o lugar ilustra, de forma literal, o que há por trás da febre de consumo que atormenta o homem moderno, que se condicionou a definir-se não pelo que é, mas pelo que possui. Na realidade, não compramos simples produtos, mas o que estes simbolizam: um estilo de vida sonhado, mas nunca totalmente alcançado, já que sua regra básica implica na própria necessidade de `querer sempre mais`.
Consumir tornou-se, para a maior parte das pessoas, uma fonte de prazer quase orgástica; e introduzir o cartão na fenda do caixa eletrônico iguala-se, portanto, ao ato sexual em si. Em um mundo no qual crianças de 7, 8 anos andam equipadas com celulares de última geração, a filosofia do `sou o que possuo` é pregada desde a infância, a começar pela `sandália da Xuxa` ou pelo novo game do Pokémon. Aliás, este modo de vida dedicado ao externo, à aparência, impõe até mesmo padrões de beleza massacrantes e, de certo modo, inatingíveis, já que o mundo real não permite correções no Photoshop (e Masagão ilustra este angustiante conflito com a própria imagem ao adotar a perspectiva de uma jovem em um provador de roupas). E se a auto-imagem transformou-se em fonte de tamanha ansiedade, o que dizer da expectativa criada com relação aos possíveis parceiros? Isoladas do resto do planeta por preconceitos `comerciais` (um novo tipo que se une ao racismo e à homofobia, entre outros), as pessoas passam a avaliar seus interesses amorosos como se escolhessem uma roupa: a procura não é por virtudes, mas por comodidades (como diz um dos anúncios pessoais exibidos durante o filme: `Procuro mulher intelectualizada que saiba cozinhar`).
Em certo momento de 1,99..., vemos uma prateleira que, sob o aviso `Escolha sua dívida`, traz garrafas com várias opções: `3 meses`, `12 meses`, `6 anos`, e assim por diante - numa simbolização precisa do que é oferecido, por exemplo, nos canais de compra da tevê a cabo. Podemos até não precisar de uma máquina que fabrica algodão doce colorido - mas não seria `chique` ter uma em casa por `apenas` 12 parcelas de R$ 15,90? Não é à toa que vivemos num universo no qual a Síndrome do Pânico, fenômeno representativo da sociedade moderna, vem assumindo caráter de verdadeira epidemia...
Porém, Masagão não se esquece da massa de excluídos: párias da sociedade que cometeram o terrível crime de não possuírem poder de consumo - mesmo sendo esta mesma sociedade a responsável por impedir qualquer tipo de ascensão por parte de seus `condenados`, que são, portanto, barrados na entrada do `supermercado`. E também não é uma simples coincidência o fato de que os dois únicos negros vistos no interior do estabelecimento sejam empregados, e não clientes, num triste reflexo da vida real (aliás, o filme volta a acertar ao retratar o tratamento dado aos nossos idosos).
Composta por Wim Mertens e `organizada` pelo sempre surpreendente André Abujamra, a trilha sonora do longa é um elemento fundamental da produção, já que realiza a difícil tarefa de conferir o tom exato às idéias de Masagão: mesmo que a ação não revele sentimentos precisos, a música conduz o espectador por cada uma das emoções contidas em cada seqüência, oscilando entre a melancolia e o humor. Confesso, aliás, que fiquei profundamente emocionado ao ser `bombardeado` com o óbvio: vivemos em uma sociedade que condena nossas idiossincrasias e assassina nossa individualidade, convertendo-nos em uma verdadeira multidão de marionetes manipuladas pela mídia e pelo marketing (e é irônico que eu tenha chorado enquanto segurava uma lata da nova `Coca Light Lemon`).
No entanto, a maior beleza de 1,99... não é sua capacidade de gerar algumas reflexões como estas, mas sim o fato de possuir inúmeras outras idéias capazes de originar dezenas de artigos sobre os mais diferentes temas. Seria impossível tentar absorver metade das observações de Masagão sem assistir ao filme mais duas ou três vezes. Afinal, eu sequer citei a seqüência em que um homem é espancado por um sujeito que veste a camisa dos Lakers, o que poderia resultar em uma análise sobre o papel imperialista dos Estados Unidos no mundo moderno.
Mas agora é sua vez de estudar este maravilhoso filme.
19 de Outubro de 2003