Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
30/08/2002 | 31/08/2002 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
130 minuto(s) |
Dirigido por Fernando Meirelles. Co-direção de Kátia Lund. Com: Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino da Hora, Seu Jorge, Phellipe Haagensen, Jonathan Haagensen, Douglas Silva, Graziella Moretto, Alice Braga, Daniel Zettel, Darlan Cunha, Gero Camilo e Matheus Nachtergaele.
Cidade de Deus é o filme certo no momento certo. Lançada em meio a uma das maiores crises de violência da história de nosso país (mesmo se considerarmos a violência patrocinada pelo Estado na época da ditadura), a produção retrata de forma realista - e, conseqüentemente, chocante - o terrível universo do tráfico que é, sem dúvida, o maior responsável pelas barbaridades que todos enfrentamos atualmente. Mergulhando sem reservas em um mundo praticamente desconhecido por boa parte da sociedade, que de seu confortável sofá encara todos os habitantes de nossas favelas como um mero constrangimento, Cidade de Deus prova que o problema é infinitamente mais complexo do que o Jornal Nacional tenta nos fazer acreditar: capturar Elias Maluco (ou qualquer outro grande traficante) será tão eficaz no combate ao tráfico quanto a morte de Osama bin Laden o será para o fim do terrorismo mundial. O problema não reside em uma pessoa, mas em um sistema cujo `código de honra` é mais sangrento do que a guerra do Vietnã e cujos lucros são maiores do que a indústria do tabaco.
Produzido a partir do livro homônimo de Paulo Lins, o filme narra uma série de casos verídicos que fazem parte da história de Cidade de Deus, uma das favelas mais perigosas do Rio de Janeiro. Criado na década de 60 para servir como lar de desabrigados (eliminando, com isso, as `imperfeições` na paisagem da Cidade Maravilhosa), o local passou a ser palco de batalhas violentas entre diferentes gangues que disputam a supremacia no tráfico – e o roteiro (brilhantemente escrito por Bráulio Mantovani) se concentra especialmente na rivalidade entre o perigoso Zé Pequeno e o trágico Mané Galinha, que entra na guerra para vingar a morte do irmão. Ao mesmo tempo, somos apresentados ao jovem Buscapé, cujo grande objetivo é tornar-se um fotógrafo profissional e fugir daquela triste vida.
Analisando de forma quase didática a hierarquia desta cruel indústria, o filme leva o espectador a compreender melhor as difíceis escolhas que se apresentam aos sofridos `civis` que se encontram no meio do fogo cruzado: manter-se honesto e viver em uma honrosa miséria ou aliar-se aos bandidos e sonhar com uma renda mais generosa? Em certo momento, Buscapé, que acabara de ser demitido em função do preconceito de seu patrão, vê Zé Pequeno passear alegremente em sua moto e questiona os méritos de sua própria honestidade. Seja como for, uma coisa é certa: criminoso ou não, o morador da favela é visto com desconfiança pela sociedade. Então, por que insistir no pudor?
Dirigido de forma magistral por Fernando Meirelles (que divide os créditos com Kátia Lund), Cidade de Deus impressiona em seu aspecto técnico: trabalhando com diferentes estilos de fotografia para cada uma das décadas retratadas ao longo da história, o cineasta faz uma ótima recriação de época e emprega a trilha sonora de forma eficaz (a seqüência em que o traficante Bené se `transforma` em playboy ao som de Metamorfose Ambulante é genial). Além disso, o filme conta com uma edição enérgica e impactante: as passagens de tempo, em particular, impressionam por sua agilidade (observe, por exemplo, a forma como Meirelles mostra o envelhecimento de Zé Pequeno e sua crescente crueldade ao exibir uma seqüência de tiros). Para completar, a estrutura narrativa da história é interessantíssima, mostrando incidentes a partir de vários pontos de vista, apresentando personagens importantes de maneira casual e utilizando freeze-frames e telas divididas em vários momentos.
No entanto, o cineasta jamais permite que o estilo se torne mais importante do que o conteúdo, provando que a violência daquele mundo é ainda mais chocante do que poderíamos imaginar. E que é pior: inevitável, já que, no calor da guerra, um tapa no rosto pode se transformar em motivo suficiente para se matar alguém. Há uma cena, em especial, que se torna particularmente aterrorizante ao ilustrar algo que é um fato: não há crianças em um campo de batalha; todos são soldados – e Zé Pequeno aplica esta regra com ferocidade quando um grupo de garotos assalta uma padaria protegida pelo tráfico.
Felizmente, o roteiro é inteligente o bastante para perceber que nenhum espectador suportaria uma imersão total nesta dura realidade e, assim, acrescenta pequenos momentos de alívio cômico ao longo da história – e, ao melhor estilo Quentin Tarantino, consegue arrancar risos a partir do absurdo da violência, como no momento em que Zé Pequeno caminha ao lado de sua gangue depois de espancar um desafeto e, de repente, pára e diz: `Peraí! Por que não matei aquele filho da puta? Vamos voltar, galera!`.
Aliás, o grande trunfo de Cidade de Deus diz respeito justamente à veracidade que seu elenco confere à imensa galeria de personagens: protagonizado basicamente por atores amadores (habitantes da favela), o filme apresenta ao público uma série de rostos novos que certamente merecem todo o sucesso do mundo: Leandro Firmino da Hora, como Zé Pequeno, é absolutamente assustador; Alexandre Rodrigues, como Buscapé, confere um centro de sanidade à história; e os irmãos Jonathan e Phellipe Haagensen cativam o espectador nos papéis de Cabeleira e Bené, respectivamente. Além disso, o jovem Douglas Silva (que interpreta Zé Pequeno na infância) repete o show que deu no curta-metragem Palace II e consegue provocar o riso ao mesmo tempo em que exala uma impressionante aura de perigo. Fechando o elenco, vem Matheus Nachtergaele, cujo maior mérito é integrar-se com competência aos seus desconhecidos companheiros.
Divertido, inteligente, tenso e sempre interessante, Cidade de Deus não se furta de retratar a corrupção policial e marca pontos extras ao mostrar a hipocrisia daqueles que, ao mesmo tempo em que denunciam o terror do tráfico, alimentam a indústria ao comprar seu `inocente` baseado (estou me referindo à repórter vivida por Graziella Moretto – uma figura mais comum no meio jornalístico do que se pode imaginar).
E para aqueles que condenam o filme por seu desfecho `otimista` (o qual não pretendo revelar), faço apenas uma pergunta: o que há de positivo na tomada que encerra a história? A resposta: nada. Aquela é uma visão funesta, estarrecedora. E tragicamente real.
Faça um favor a si mesmo e assista a Cidade de Deus. Você não apenas terá duas horas incrivelmente divertidas (sim, o filme prende a atenção e funciona como entretenimento), como também aprenderá muito mais sobre este outro país que existe dentro do nosso velho e sofrido Brasil.
29 de Agosto de 2002