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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
16/01/2020 20/11/2019 4 / 5 5 / 5
Distribuidora
Diamond Films
Duração do filme
102 minuto(s)

Os Miseráveis (2019)
Les misérables (2019)

Dirigido por Ladj Ly. Roteiro de Ladj Ly, Giordano Gederlini e Alexis Manenti. Com: Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djibril Zonga, Boris Gamthety, Issa Perica, Al-Hassan Ly, Almamy Kanouté, Steve Tientcheu, Almamy Kanouté, Nizar Ben Fatma, Raymond Lopez e Jeanne Balibar.

Final da Copa de 2018. Milhares de pessoas tomam as ruas de Paris com o objetivo de assistirem à partida em locais de exibição pública na esperança de poderem compartilhar (esperam) a alegria de uma vitória com sabor de triunfo patriótico. E quando o título finalmente é confirmado – consagrando também o jovem atleta Mbappé, que, negro e filho de imigrantes, representa todas as contradições, conflitos e preconceitos do país – a população ocupa a larga avenida Champs-Élysées e é capturada através de uma teleobjetiva em um quadro fabuloso que traz a multidão com o Arco do Triunfo ao fundo.


E é sobre aquela imagem de bandeiras francesas tomando a capital do país nas mãos do povo alegre que surge o título deste filme de Ladj Ly: Os Miseráveis. E se a projeção houvesse terminado aqui, o diretor já teria oferecido material suficiente para que o espectador refletisse por horas.

Porém, é claro que ela não termina, sendo seguida por outros noventa e poucos minutos intensos e envolventes que, embora criem uma experiência notável, são amarrados por um epílogo que engasga justamente quando deveria exibir a voz mais firme.

Co-escrito pelo próprio cineasta ao lado de Giordano Gederlini e do ator Alexis Manenti, o longa acompanha uma galeria de personagens na vizinhança pobre de Gavroche (que deu nome ao garoto morador de rua presente no livro de Victor Hugo) e os três policiais da divisão de Narcóticos encarregados de patrulhá-la durante o dia: o explosivo Chris (Manenti), o imponente Gwada (Zonga) e o novato Laurent (Bonnard), que, depois de trabalhar no interior, mudou-se para Paris para ficar perto do filho e se encontra prestes a ter um primeiro dia na função nova que se revelará também um dos mais difíceis de sua carreira. Gradualmente, o diretor nos apresenta a outras figuras-chave da trama: o “Prefeito” (Gamthety), que controla a região cobrando proteção dos comerciantes locais; o jovem Issa (Perica), que está sempre forçando seu pai a buscá-lo na delegacia; o tímido Buzz (Al-Hassan Ly, filho do diretor), cujo drone é uma simples ferramenta de voyeurismo até registrar um incidente de violência; e Salah (Kanouté), que, depois de uma vida de crimes, converteu-se em uma espécie de líder espiritual da região.

Com a câmera sempre em movimento enquanto segue os personagens em seus encontros, confrontos e fugas, Os Miseráveis transporta o espectador para a lógica das ruas de Gavroche, retratando o medo dos garotos locais diante da brutalidade policial, mas também a tensão experimentada pelos oficiais quando cercados por uma multidão raivosa. Este equilíbrio é, por sinal, uma das forças do longa, que compreende como, em essência, todas aquelas pessoas são prisioneiras de um sistema desenhado para colocá-las em conflito umas com as outras enquanto aqueles que detêm o poder seguem ceifando tudo o que encontram à sua disposição. Neste sentido, é perfeito que a obra jamais vá além daquelas pessoas mesmo enquanto comenta as circunstâncias sociais e políticas que as colocaram ali.

Aliás, Ladj Ly traça um painel tão verossímil destes indivíduos que se torna impossível não crer que um vasto trabalho de pesquisa de campo precedeu a elaboração do roteiro, que é enriquecido por observações quase tangenciais feitas pelos personagens (como a imagem dos subordinados do Prefeito cobrando a proteção com maquininhas de cartão de crédito ou o comentário de Chris sobre como o Instagram se tornou uma ferramenta de investigação crucial, já que os jovens transgressores sempre cedem à tentação de divulgar seus feitos na rede). O mesmo, diga-se, se aplica a elementos daquela comunidade – como a prática do(a?) toutine, uma espécie de empréstimo sem juros feito a partir de uma vaquinha entre vizinhos, ou a divertida passagem na qual os garotos da vizinhança tentam fugir quando veem quatro integrantes da irmandade islâmica local se aproximando não por temerem qualquer violência, mas sim o sermão que sabem que receberão por terem se comportado mal.

Assim, é uma pena que o filme se perca em seu epílogo, que, num esforço para sugerir o poder não compreendido (ou exercido) das massas oprimidas caso queiram se erguer contra seus opressores, acaba se tornando ambíguo ao poder ser lido como uma lição acerca da necessidade de mantê-las oprimidas com o propósito de evitar a sublevação e o caos consequente. Além disso, ao trazer Chris gritando “Eu sou a Lei!”, numa citação clara de Louis XIV, o diretor/roteirista entrega um erro de compreensão fatal ao comparar o que enxerga como duas figuras de autoridade, mas que se encontram em níveis completamente díspares de poder, já que o policial é uma mera ferramenta dos poderosos e em nada similar ao Rei-Sol.

Uma leitura trôpega que enfraquece a narrativa depois de uma introdução tão impactante, mas não a ponto de anular sua força.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2019

15 de Maio de 2019

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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