Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
23/10/2020 | 23/10/2020 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Amazon | |||
Duração do filme | |||
95 minuto(s) |
Dirigido por Jason Woliner. Roteiro de Sacha Baron Cohen, Peter Baynham, Jena Friedman, Anthony Hines, Lee Kern, Dan Mazer, Erica Rivinoja, Dan Swimer. Com: Sacha Baron Cohen e Maria Bakalova.
Sacha Baron Cohen é o mais radical dos method actors. Se Daniel Day-Lewis insiste em ser chamado pelo nome de seu personagem durante as filmagens e Robert De Niro engordou 30 quilos para viver Jake LaMotta, Cohen está disposto a arriscar sua vida ao se recusar a abandonar suas caracterizações mesmo diante das circunstâncias mais temerárias. Durante as gravações da excelente série Who is America?, por exemplo, o ator, devidamente disfarçado, visitou uma cidadezinha do Arizona e apresentou a um grupo de cidadãos locais a proposta de construir ali “a maior mesquita fora do Oriente Médio” – e mesmo revistando todos para evitar que estivessem armados na reunião, a equipe insistiu em proteger Cohen com um colete à prova de balas caso as coisas saíssem de controle. E acreditem: isto não chega perto das situações nas quais o sujeito se envolve neste seu novo trabalho.
Lançado há 14 anos, Borat (nem vou me atrever a repetir o subtítulo inteiro) elevou o conceito de mockumentary a um nível inédito ao trazer o personagem-título interagindo com pessoas reais que, mesmo reconhecendo a presença da câmera, não exigiam muito estímulo para que expusessem seus preconceitos e sua ignorância, escancarando o racismo, a homofobia, a misoginia, a xenofobia e antissemitismo que se encontravam logo ali, mal disfarçados e quase na superfície. Esta, por sinal, segue sendo a estratégia central desta continuação, que já começa com uma montagem na qual o Brasil, representado pela figura grotesca de Bolsonaro, é usado como parte de uma piada sobre como o mundo se tornou mais absurdo e intolerante desde que o original chegou aos cinemas. A partir daí, voltamos a acompanhar o jornalista cazaquistanês Borat Sagdiyev (Cohen), que é encarregado por seu governo de entregar um presente ao vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, para que possam ser vistos com simpatia por Donald Trump.
No entanto, como o sucesso do primeiro filme tornou a tarefa de Sacha Baron Cohen mais difícil, já que Borat se tornou conhecido demais para enganar facilmente os desavisados, o roteiro escrito por oito pessoas (normalmente, um péssimo sinal, mas não aqui) encontra uma solução ao levar o “jornalista” a adotar vários disfarces, o que acrescenta uma interessante camada à composição do ator, que é forçado a viver um personagem vivendo outros personagens. Além disso, se antes o centro da narrativa eram as cenas improvisadas com figuras reais, agora há uma maior quantidade de passagens roteirizadas, o que traz mais coesão à história em si, permitindo que Borat e a filha Tutar (a búlgara Maria Bakalova) atravessem arcos mais definidos que trazem um bem-vindo centro emocional à trama.
Dito isso, a dupla (sim, Bakalova demonstra ter uma cara-de-pau que faz jus à de Cohen) protagoniza um número suficiente de momentos de improviso em situações “reais” para não frustrar as expectativas do público, indo de interações mais inconsequentes (como aquela com uma influencer digital) a outras que assumem características mais chocantes (como com um pastor “pró-vida” que comprova o grau de hipocrisia daqueles que usam o discurso como mera forma de controlar o corpo das mulheres, demonstrando completo descaso para com o resto enquanto se definem como “cidadãos de bem”). E há também, como não poderia deixar de ser, aquelas que provocam riso através do embaraço, como a sequência em um baile de debutantes.
Nenhuma destas, porém, exige a coragem daquelas que colocam Cohen em contextos inquestionavelmente perigosos – e, sem revelar muito, aponto em particular aquele no qual o ator se vê diante de uma pequena multidão que conta com supremacistas brancos/neo-nazistas armados... e embriagados. Nem Tom Cruise se arriscaria desta forma.
Mas Borat: Fita de Cinema Seguinte busca equilibrar todo este peso (por mais divertido que seja) com passagens dominadas pela gentileza, o que funciona como um respiro fundamental diante de uma sociedade que se aproxima rapidamente da pura distopia – e, neste sentido, a senhorinha judia e a babá contratada para cuidar de Tutar são um alívio moral que nos devolve alguma esperança na humanidade. Por outro lado, é sintomático que em 2006 Sacha Baron Cohen tenha sido processado por várias pessoas cujos preconceitos expôs, ao passo que, até agora, o único processo inspirado por Borat 2 tenha vindo justamente da família da tal senhorinha, que faleceu no início do ano e à qual o filme é dedicado. É quase como se o vergonhoso em 2020 fosse exibir decência e empatia básicas.
O fato é que, nos últimos anos, a intolerância, o preconceito e o ódio saíram do armário e se tornaram plataforma de governo; o que antes era sussurrado anonimamente em fóruns obscuros na Internet agora é anunciado aos berros por deputados, senadores, governadores e presidentes, ao passo que a objetividade da Ciência é questionada por pastores evangélicos que substituem estatísticas e evidências empíricas por afirmações patentemente mentirosas tuitadas em caixa alta. A articulação de argumentos embasados se tornou menos importante do que o número de retweets e o falso moralismo dos imundos segue ganhando adeptos ao ocultar suas motivações reais (financeiras, em sua maioria) sob o manto de uma “defesa da família” que soa tão antigo quanto é. Assim, quando uma confeiteira aceita escrever uma frase antissemita em um bolo e um cirurgião plástico brinca casualmente que assediaria a jovem paciente caso estivesse sozinha, é difícil ficarmos surpresos com uma dupla de seguidores da teoria da conspiração QAnon que, ao mesmo tempo em que acusa os democratas de formarem uma “rede de pedofilia”, não vê problema algum em ajudar Borat a convencer a filha de 15 anos a se tornar escrava sexual de um político republicano.
(E tampouco é chocante ver como os mesmos “cidadãos de bem” já se dedicam a defender um dos principais aliados de Trump, o ex-prefeito de Nova York Rudy Giuliani, depois de sua aparição... cof-comprometedora-cof... neste filme.)
Divertido, mas também sombrio por demonstrar como seu humor só se torna possível graças à feiura daqueles que retrata, Borat ainda se dá ao luxo de oferecer ao espectador uma das reviravoltas mais surpreendentes que Hollywood concebeu nos últimos anos (com direito a uma rápida e brilhante ponta). É só uma pena que esta revelação não seja a de que os últimos anos foram apenas um pesadelo. Taí um clichê que não me incomodaria.
21 de Outubro de 2020
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