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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
23/02/2001 20/05/2000 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
98 minuto(s)

Amor à Flor da Pele
In the Mood for Love ou Fa yeung nin wah

Dirigido e roteirizado por Wong Kar-Wai. Com: Tony Chiu-Wai Leung, Maggie Cheung, Rebecca Pan, Kelly Lai Chen, Chan Man-Lei, Chien Szu-Ying, Paulyn Sun, Roy Cheung.

O tesão é óbvio; o amor, elusivo. Enquanto o desejo, o prazer e o orgasmo são sensações que por natureza levam a manifestações externas que as tornam facilmente identificáveis, o amor se disfarça sem o auxílio de significantes óbvios como um suspiro, uma declaração verbal ou um toque delicado. Assim, é curioso constatar a contradição entre o título brasileiro de Amor à Flor da Pele, que sugere uma exposição clara do sentimento, e os esforços dos amantes vistos em sua história para sufocar esta expressão. Entre sorrisos raros, olhares desviados e olhares sustentados, o casal retratado pelo filme se prende a convenções morais e sociais, demonstrando uma trágica determinação de lealdade a parceiros que há muito já deixaram de retribuí-la.


Vividos por Tony Leung e Maggie Cheung, o Sr. Chow e a Sra. Chan moram em apartamentos vizinhos em Hong Kong, em 1962, esbarrando com frequência nas escadarias e corredores apertados do prédio e dos restaurantes da região, quando geralmente estão entregues à solidão causada pela ausência constante de seus respectivos parceiros. Aos poucos, à medida que percebem que estas ausências representam uma suspeita coincidência, os dois confirmam a infidelidade que os une e passam a se encontrar para dividir o sofrimento e o desamparo.

Concebidos pelo designer de produção William Chang como ambientes claustrofóbicos e ocupados por um excesso de mobílias e objetos, os cenários de Amor à Flor da Pele evocam uma cidade superpopulosa e sem espaço na qual o Sr. Chow e a Sra. Chan acabam se tornando o respiro um do outro – algo acentuado pelo contraste entre seus ambientes de trabalho, cujas tonalidades de verde são ainda mais drenadas de vida e calor pelas luzes fluorescentes, e o quarto de hotel no qual passam a se encontrar e que traz um intenso vermelho nas cortinas, nas paredes, e uma saturação na fotografia que preenche de calor o tom de suas peles. Ao mesmo tempo, os belíssimos vestidos usados por Maggie Cheung (também responsabilidade de William Chang) apontam para uma preocupação com o pudor e a “decência” em suas golas altas, mas também para uma sensualidade latente em seus contornos justos que definem seu corpo e que a câmera destaca não como forma de objetificação, mas como signo.

Também sugestivos e simbólicos são os travellings feitos pelos diretores de fotografia Ping Bin Lee e Christopher Doyle, que estabelecem ligações recorrentes entre os dois personagens, estejam estes frente a frente ou separados pela parede entre seus apartamentos – sugerindo como a curta distância física não faz jus ao abismo que os mantém solitários (e que, mais tarde, terá a lógica invertida quando os milhares de quilômetros que passam a separá-los não conseguem levá-los a esquecer de como se sentiam juntos). Do mesmo modo, quando os vemos (em mais de uma ocasião) através das grades de uma janela, temos a representação perfeita dos intensos sentimentos que mantêm aprisionados e que, por sua vez, os aprisionarão enquanto não forem expressos.

E aí reside a tragédia do Sr. Chow e da Sra. Chan: se os descrevi como “amantes” no início deste texto, foi por muito amarem, não por se encaixarem na definição mais carnal da palavra. Cúmplices na inocência – o que pode soar como um oximoro até percebermos que há, nesta inocência, uma vingança -, os dois exibem certo orgulho torturado na determinação de que “Não seremos como eles”, falhando em perceber que de alguma maneira já retribuíram o adultério em um sentido muito mais profundo e significativo. Ao mesmo tempo, a repressão do desejo substitui o sexo por uma intensa sensualidade que se manifesta quando criam juntos histórias sobre artes marciais (em contraposição à esterilidade de seus casamentos) ou quando se entregam a uma versão curiosa de role-playing ao fantasiarem como teria se iniciado o caso entre seus parceiros ou como o marido da Sra. Chan reagiria caso fosse confrontado por esta – e a decisão de Wong Kar-Wai de jamais revelar os rostos dos companheiros do casal principal é inteligente por cimentar o vazio emocional que deixaram para trás e por fortalecer a importância dos personagens de Leung e Cheung um para o outro.

Os dois intérpretes, por sinal, são fundamentais na tarefa de levar o espectador a perceber a complexidade de sentimentos que raramente são verbalizados – e um momento que resume com perfeição a sensibilidade e o talento de ambos é aquele em que o Sr. Chow, ao constatar que o amor que sentem jamais será consumado, diz que não voltará a ver a Sra. Chan, lançando um rápido olhar em sua direção como se buscasse uma reação que o convencesse de estar errado, mas deixando de testemunhar como ela o encara com lamento antes de também voltar os olhos para baixo em resignação à impossibilidade de ficarem juntos. É uma interação que dura quase nada, mas diz tudo.

Como dizem também as músicas incluídas pelo cineasta e que, cantadas por Nat King Cole em espanhol, falam de “olhos que nunca beijarei” e de possibilidades resumidas por “talvez, talvez, talvez”. Sim, trata-se de um amor frustrado pelas circunstâncias, mas também por escolha, por uma decisão de asfixiá-lo por autoproteção, por moralismo e, em parte, pelo reconhecimento de que um amor não vivido pode se manter como um amor idealizado e, portanto, jamais capaz de magoar.

Um amor que sobreviverá apenas como um segredo guardado em um vão de um muro antigo e coberto por terra, gravetos e saudade.

25 de Março de 2021

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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