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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
04/01/2024 27/10/2023 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
O2 Play/Mubi
Duração do filme
113 minuto(s)

Priscilla
Priscilla

Dirigido e roteirizado por Sofia Coppola. Com: Cailee Spaeny, Jacob Elordi, Ari Cohen, Dagmara Dominczyk, Tim Post, Lynne Griffin, Olivia Barrett, Luke Humphrey.

Priscilla leva uma vida de muitos confortos materiais: sua residência é uma mansão de estilo colonial em Memphis, no estado norte-americano de Tennessee; sua graduação no ensino médio foi recompensada com um carro novo; suas viagens aéreas são sempre na primeira classe e seu guarda-roupas conta com uma quantidade de vestidos e sapatos que lhe permitiria passar meses sem repetir o figurino. Mas ela é também uma jovem solitária que não tem muita certeza de seu lugar no mundo além daquele definido por suas relações pessoais, o que a torna melancólica como o filme que a cerca. Ela é, em outras palavras, uma protagonista de Sofia Coppola.


Baseado na autobiografia de Priscilla Presley, o novo trabalho da cineasta começa a acompanhar a personagem-título quando esta tinha 14 anos de idade e conheceu pessoalmente o homem que era então uma das figuras mais famosas do planeta e se tornaria seu marido, Elvis (Elordi). Filha de um oficial do exército que atuava na Alemanha no mesmo período em que o “rei do rock”, que havia sido convocado, servia como soldado no país, ela atrairia a atenção do músico em uma festa na casa deste e, depois de um breve namoro e de um afastamento provisório, se mudaria para sua mansão nos Estados Unidos, concluindo seus estudos em uma escola católica local e se tornando sua esposa alguns anos depois. Obrigada a lidar com as mudanças de humor do companheiro e com suas inúmeras infidelidades – além dos longos períodos que ele passava viajando com seus shows -, Priscilla se tornaria dependente de comprimidos (estimulantes e sedativos) inicialmente apresentados por Elvis e também da atenção do sujeito, que a oferecia ou negava de modo aparentemente aleatório.

Abrindo a narrativa com um plano-detalhe dos pés da moça caminhando em um tapete felpudo e que logo é seguido por outro que se concentra em um de seus olhos enquanto se maquia, Coppola deixa evidente desde o início que seu filme oferecerá ao espectador uma visão subjetiva das experiências da biografada, mantendo-se ao lado desta durante toda a projeção em vez de saltar de um personagem a outro para alcançar o tipo de narração irrestrita que faz parte da abordagem hollywoodiana clássica. Do mesmo modo, a sensação evocada pelos dedos envoltos pelas fibras grossas do tapete indica também o tratamento impressionista que a diretora abraçará ao retratar os incidentes presentes em seu roteiro, preocupando-se menos com a objetividade dos fatos e mais com a percepção (emocional, psicológica, sensorial) destes pela garota.

O resultado é um longa construído a partir de cenas curtas que muitas vezes remetem quase a vinhetas, servindo para ilustrar a passagem do tempo e os efeitos que cada acontecimento deixa na personagem. Com isso, Priscilla acaba soando episódico, é verdade, mas não em um sentido negativo daqueles observados em filmes que parecem se limitar a uma compilação de “melhores momentos” da vida de alguém; em vez disso, estes saltos constantes sugerem o acúmulo de traumas e mágoas que, grandes ou pequenos, vão gradualmente sugando a vitalidade daquela mulher apesar de seu empenho em preservar seu amor e seu relacionamento.

E esta não é uma tarefa fácil, já que o Elvis visto aqui não é a figura célebre definida por sua Arte e pela natureza lendária que esta lhe conferiu (ou seja: aquela vista no filme de Baz Luhrmann), mas um homem cuja capacidade de oferecer afeto é limitada por seu egoísmo, sua imaturidade e seu narcisismo – traços acentuados pela fama descomunal que o habituou a ser atendido imediatamente em todos os seus caprichos. Ciente de que limitar o acesso da companheira à sua atenção é uma punição insuportável (especialmente depois que esta passa a morar a um oceano de distância dos pais e dos irmãos), o sujeito não leva em consideração nem as aspirações mais modestas da namorada, como, por exemplo, a de trabalhar meio período em uma loja de roupas enquanto ele se encontra ausente (“Ou eu ou uma carreira, baby; eu preciso que você esteja aí quando eu ligar”, ele responde simplesmente) – e este controle se estende ao que ela veste, à maquiagem que usa e à atenção que ela deve dedicar às curiosidades intelectuais dele (“Isto nunca vai funcionar se você não compartilhar meus interesses e minhas filosofias”, ele diz, completando que “muitas mulheres por aí iriam querer compartilhar isso comigo”). Dito isso, a performance de Jacob Elordi é inteligente ao jamais permitir que estas posturas soem maliciosas; para Elvis, não há crueldade em suas falas e ações, mas apenas as exigências “naturais” que um homem de sua época, região, educação e status teriam o direito de fazer – um sentimento cuja toxicidade não se torna menor apenas por não ser conscientemente destrutivo.

É aqui, por sinal, que a abordagem de Sofia Coppola pode gerar confusão e mesmo recriminação, já que o filme não se preocupa em condenar ostensivamente o cantor na maior parte do tempo. Isto, contudo, é reflexo não de uma hipotética indulgência por parte da obra, mas do ponto de vista que a guia: para Priscilla, as atitudes do marido não são as de uma criatura cruel ou emocionalmente abusiva, mas as de um homem que ela ama profundamente e cujas falhas podem ser corrigidas com afeto e dedicação. Aliás, isto ocorre desde o princípio do longa: se para o espectador é incômodo (para usar um eufemismo) ver um sujeito de 24 anos de idade seduzindo e beijando uma pré-adolescente de 14, para esta não há qualquer maldade, já que acredita que ele apenas a enxerga como uma mulher mais velha e sabe que ela o compreende como ninguém mais é capaz de fazê-lo. Desta forma, nosso sentimento de proteção em relação à jovem é potencializado por percebermos tudo que ela ainda é incapaz (por amor e falta de maturidade) de compreender – como, por exemplo, a tristeza de um “pedido de casamento” que é feito não como uma pergunta (“Quer casar comigo?”), mas como uma afirmação/definição (“Vamos nos casar”).

Neste sentido, a composição de Cailee Spaeny é fundamental para que o filme funcione: inicialmente vivendo Priscilla como uma garota tímida que foi habituada a falar em tom baixo mesmo quando protesta diante de algo que considera injusto, a atriz consegue projetar a insegurança juvenil da protagonista mesmo quando esta sorri durante um jantar a fim de tentar se mostrar à vontade ao lado dos amigos do marido. Hábil também ao projetar o sentimento de isolamento que ela experimenta na escola, em eventos públicos e – o mais trágico – quando está apenas com o companheiro, Spaeny aos poucos traz força e vitalidade à personagem, mas não de modo completo, pois isto, supomos, ela conquistaria apenas anos – talvez uma ou duas décadas – depois, ao ter a chance de viver fora da sombra de Elvis.

Fotografado por Philippe Le Sourd, colaborador regular de Coppola, Priscilla emprega contrastes entre as temperaturas das cores para salientar a impressão que cada sequência provoca na moça, saltando, por exemplo, dos tons frios da Alemanha para o calor de Las Vegas (já as passagens em Graceland variam de acordo com o período). Enquanto isso, a direção de arte de Tamara Deverell não apenas faz um belo trabalho de recriação de época como confere texturas marcantes para os objetos de cena manipulados por Priscilla e que são parte essencial de seu cotidiano e de sua relação com aquele mundo, dos tapetes aos potes contendo produtos de maquiagem, passando por cílios postiços e capas de revistas e discos. De maneira similar, os fabulosos figurinos de Stacey Battat refletem não só a passagem de tempo, mas o amadurecimento da mulher e sua individualização crescente, deixando de ecoar apenas os gostos do marido. Para completar, os quadros concebidos por Le Sourd e Coppola sâo frequentemente elegantes e evocativos, explorando também a grande diferença entre as alturas de Spaeny e Elordi (41 centímetros) para ressaltar a dinâmica desigual do casal (na realidade, Elvis era 22 centímetros mais alto, mas a falta de veracidade ajuda o filme neste caso).

Mantendo o infame coronel Parker ausente da narrativa, Priscilla impede com razão que a responsabilidade pelas ações do cantor seja atribuída ao seu empresário controlador, o que não significa que falte empatia por Elvis – e no terceiro ato, quando este se encontra imobilizado por seu contrato com o cassino em Las Vegas, a fotografia cobre sua realidade com um vermelho que parece mergulhá-lo em um tumulto interno infernal (e a decisão de resumir seu espetáculo a um único plano rodado em contraluz, além de econômica, enfatiza sua solidão). Em contrapartida, a conversa final do casal é tão resumida à sua essência que se torna artificial e desajeitada - e ao ouvir que a esposa deseja o divórcio, a reação do músico é imediatamente perguntar “você quer dizer que estive cego a ponto de não ver que isso aconteceria?”, o que, além de tudo, é uma fala preguiçosa e redutiva.

Equívocos menores à parte, porém, Coppola compreende a perversidade de um relacionamento em que a disparidade de poder impede a existência de um companheirismo real – o que vai além da questão da fama e do dinheiro, começando pela impossibilidade de que alguém ainda longe de se tornar um adulto possa se dar conta de sua fragilidade diante de um parceiro bem mais velho.

Pois por mais que acreditasse na própria maturidade e independência, o fato é que muito antes de a personagem-título sequer ter a chance de descobrir quem era Priscilla, sua identidade já havia sido irremediavelmente definida como Presley.

19 de Dezembro de 2023

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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