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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
07/03/2024 22/12/2023 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
California Filmes
Duração do filme
132 minuto(s)

Garra de Ferro
The Iron Claw

Dirigido e roteirizado por Sean Durkin. Com: Zac Efron, Holt McCallany, Maura Tierney, Harris Dickinson, Stanley Simmons, Jeremy Allen White, Lily James, Michael Harney, Aaron Dean Eisenberg.

Logo nos primeiros segundos de Garra de Ferro, o protagonista-narrador Kevin Von Erich (Efron) relata que desde a infância ouvia pessoas dizendo que sua família era “amaldiçoada”, o que poderia ser considerado uma hipérbole típica de cinebiografias que, interessadas em aumentar o drama da trajetória de seus personagens, costumam inflar suas histórias a ponto de se tornarem quase uma fantasia. Neste caso, porém, o diretor/roteirista Sean Durkin se viu compelido a ir na direção oposta, eliminando tragédias ao construir o longa por temer que o excesso de fatalidades levasse o espectador a duvidar da veracidade do que era narrado – e basta dizer que, diferentemente do que o filme mostra, Kevin tinha cinco irmãos, não quatro, perdendo o caçula quando este se matou com um tiro na cabeça.


Agora imagine ter uma biografia tão repleta de calamidades que um drama hollywoodiano busca suavizá-las em vez de explorá-las.

Abrindo a narrativa com um primeiro plano do patriarca Fritz Von Erich (McCallany) enquanto este supostamente pisoteia um adversário no ringue de luta-livre – uma imagem representativa de tudo que veremos nas duas horas seguintes -, Garra de Ferro logo salta alguns anos no tempo para reencontrá-lo já como o treinador e empresário dos filhos Kevin e David (Dickinson), que ganham a companhia dos irmãos Kerry (White) e Mike (Simons). Celebridades em Dallas (Texas), onde residem e mantêm um ginásio no qual as lutas acontecem todos os fins de semana, os Von Erich só não possuem o cinturão nacional do esporte, algo que Fritz jamais conquistou, condicionando os filhos a fazê-lo em seu lugar.

Mas a luta-livre não é um combate encenado? Como um campeão é definido em uma disputa com roteiro predefinido? Este é um dos vários elementos dos bastidores do esporte que o filme destrincha com competência, explicando, por exemplo, que este título é como uma promoção oferecida ao atleta que não apenas se destaca no ringue com sua agilidade e carisma, mas que também atrai público e, consequentemente, dinheiro (O Lutador é outra ótima obra sobre este universo). Retratando a camaradagem entre os lutadores que posam de inimigos em público, o longa salienta como o fato de as lutas serem encenadas não significa que as lesões que causam também o sejam – e há momentos durante a projeção em que ficamos realmente em dúvida quanto à realidade do que vemos: a dificuldade de Kevin para se erguer em certo ponto é encenação ou ele de fato se feriu? E a raiva que expressa aqui e ali? Esta fronteira é algo que o próprio esporte explora de modo intrigante, movendo milhões de fãs que torcem enquanto acompanham os embates mesmo sabendo que os vencedores foram determinados previamente. (E como isto seria diferente de nosso envolvimento emocional com as narrativas ficcionais que consumimos?)

Realizando um ótimo trabalho de recriação de época, Garra de Ferro investe atenção particular no visual dos irmãos Von Erich, com seus penteados que imediatamente remetem ao fim dos anos 70 e início dos 80, ao bronzeado artificial aparentemente comum entre seus colegas de profissão e nos figurinos que os diferenciam de suas personas famosas. Por outro lado, a abordagem naturalista nesta reconstrução é pontualmente abandonada em prol de uma estratégia mais expressionista, como no instante em que traz o ringue cercado por um ambiente vazio e escuro durante um evento, ressaltando o isolamento dos personagens e a atmosfera opressiva que enfrentam.

Esta opressão, claro, parte do patriarca; se há alguma “maldição” sobre os Von Erich, esta é causada pela natureza obsessiva, pela frieza e pela toxicidade de Fritz, que chega a ranquear os filhos por ordem de favoritismo antes de frisar que suas preferências podem mudar de acordo com as conquistas e a dedicação de cada um. Usando o afeto dos rapazes e o desejo que estes têm de agradá-lo para manipulá-los, o sujeito estimula a disputa entre estes ao mesmo tempo em que se exime de oferecer qualquer apoio que não esteja diretamente ligado ao esporte – um comportamento também adotado por sua esposa: quando Kevin procura os pais em momentos diferentes para pedir ajuda, recebe de ambos a instrução de que converse com os irmãos, que “servem para isso”. Encarnando o conceito de masculinidade tóxica ao proibir os filhos de chorar em circunstâncias que as lágrimas existem para processar, Fritz só não se torna um mostro completo graças à performance de Holt McCallany, que traz a dose suficiente de hesitação em determinados momentos para que vejamos uma alma por trás da fachada de pedra do personagem. O mesmo, aliás, pode ser dito sobre Maura Tierney, que retrata Doris como uma mulher engessada por sua religiosidade e que se obriga a adotar um estoicismo que reflita sua conformação com os desígnios divinos – ainda que estes pareçam cruéis a ponto de ela ter que se preocupar com o fato de estar repetindo vestidos em diferentes funerais.

Contrapondo-se a esta dureza dos pais vem o calor humano dos irmãos, que são vividos por Efron, Dickinson, White e Simons como indivíduos que aprenderam a se defender daquela cruel indiferença através do apoio mútuo e da expressão clara do amor que sentem uns pelos outros sem que isto impeça os intérpretes de diferenciarem seus personagens com talento - da autocobrança excessiva de Kerry ao bom humor de David, passando pela melancolia de Mike e a ansiedade de Kevin por se julgar responsável por todos. Neste sentido, Zac Efron, quase irreconhecível sob os músculos desenvolvidos para o filme, merece destaque por compor com sensibilidade a trajetória de Kevin, cujos modos infantilizados aos poucos são substituídos por uma rigidez inevitável diante de tantas dores, permitindo que vejamos a vulnerabilidade do protagonista e admiremos sua dedicação à família – incluindo o pai que não merece um milímetro daquela devoção e cujo golpe tradicional nas lutas (copiado pela geração seguinte) tem um nome que descreve também sua postura com os filhos: garra de ferro.

Evitando soar episódico – algo comum em cinebiografias -, o filme constrói a narrativa com fluidez, saltando de um período a outro e ilustrando a passagem dos anos com competência (e a estratégia de empregar os anos das lutas como marcadores temporais é simples, mas eficaz). Além disso, tem o mérito adicional de levar o universo que retrata tão a sério quanto os personagens, já que qualquer abordagem diferente desta serviria apenas para diminuí-los e ridicularizá-los. Para completar, Sean Durkin consegue se dar ao luxo até de incluir pequenas incursões ao fantástico sem sacrificar o peso dramático do projeto, já que sua referência à travessia rumo ao mundo dos mortos e ao barco de Caronte, por exemplo, é enriquecida pelo peso simbólico da moeda utilizada para pagar o barqueiro.

Melodramático sem recair na pieguice, Garra de Ferro mais do que justifica sua bela e devastadora cena final, que atua simultaneamente como catarse e como comprovação do aprendizado e do amadurecimento de um personagem que pode até se mostrar ainda embaraçado pelas próprias lágrimas, mas que se encontra no caminho certo para reconhecer como estas são muito mais poderosas do que o metafórico pisotear que abre o filme e sintetiza a visão de mundo de seu pavoroso pai.

12 de Março de 2024

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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