Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
07/11/2024 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Sony | |||
Duração do filme | |||
136 minuto(s) |
Dirigido por Walter Salles. Roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega. Com: Fernanda Torres, Selton Mello, Valentina Herszage, Bárbara Luz, Luiza Kosovski, Guilherme Silveira, Cora Ramalho, Pri Helena, Marjorie Estiano, Antonio Saboia, Humberto Carrão, Maeve Jinkings, Dan Stulbach, Camila Márdila, Daniel Dantas, Helena Albergaria, Thelmo Fernandes, Carla Ribas, Caio Horowicz, Luiz Bertazzo e Fernanda Montenegro.
O Cinema é uma forma essencial de preservação da memória de um país em relação à sua própria História. Este não é um trabalho feito por um ou dois filmes, mas pelo conjunto de obras sobre um período, incidentes específicos e/ou pessoas que devem figurar em nossa compreensão acerca do que vivemos no presente. Assim, ainda que títulos específicos tomem certas liberdades artísticas com relação aos fatos (algo inevitável em dramatizações), o coletivo conseguirá ao menos cimentar elementos básicos na consciência da sociedade como um todo. Não é à toa que é mais provável que um jovem brasileiro saiba mais sobre passagens importantes da História norte-americana do que sobre as de seu próprio país – e tampouco é acaso que tenha se tornado tão fácil para certos segmentos a tarefa de reescrever nosso passado, apagando para muitos os horrores de algo que jamais deveria ser esquecido. Pois a verdade é que nosso Cinema, por mais rico que seja em temas, estéticas e linguagens, produziu e produz relativamente poucos filmes sobre o período da ditadura militar – e não ajuda muito que uma parcela considerável destes trate o assunto com um descuido pavoroso.
O que torna uma obra como Ainda Estou Aqui ainda mais valiosa.
Abrindo a narrativa com o mar em um dia ensolarado, este novo trabalho de Walter Salles nos apresenta à protagonista, Eunice Paiva (Torres), em um contexto que nos remete imediatamente à ideia de liberdade – mesmo que um helicóptero militar atravesse rapidamente o céu. Mãe de cinco filhos – quatro garotas e um menino – e esposa do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva (Mello), Eunice leva uma existência confortável e feliz que mantém a ditadura militar vigente no período apenas na periferia de sua percepção, quando observa um caminhão carregando militares aqui ou o já mencionado helicóptero acolá. Vez por outra, a realidade cutuca sua tranquilidade como ao saber que a filha adolescente e os amigos sofreram uma abordagem hostil em uma blitz (no único período da história do país em que brancos de classe média foram tratados como bandidos em potencial pela PM), mas, de modo geral, estes eram contratempos pontuais para uma classe média (alta) que só ficava a par do combate ao fascismo através de reportagens pró-regime na televisão. Para muitos, a ditadura era uma abstração.
Até que homens à paisana armados entravam em sua casa – sem mandados ou qualquer tipo de respeito aos direitos civis -, quando subitamente o que era abstrato se tornava real e assustador enquanto os cidadãos (“de bem”?) se descobriam incapazes até mesmo de fazer questionamentos básicos sobre o que estava acontecendo, vendo-se limitados a seguir ordens de desconhecidos, entrando em carros sem placa de identificação, vestindo capuzes que desorientavam seu senso de direção e permitiam apenas que entrevissem manchas de sangue no chão sob seus pés e ouvissem gritos de dor e desespero à distância. Tudo isso ao mesmo tempo em que eram submetidos a interrogatórios agressivos (quando não letais) durante os quais eram pressionados a dizer o que sabiam (ou não) e viam as fotos recém-tiradas por seus algozes surgirem em um livro como suspeitos de alguma ação “subversiva” – suspeitos justamente porque foram presos e fotografados, numa profecia autorrealizável saída de um pesadelo kafkiano.
Adaptado por Murilo Hauser e Heitor Lorega a partir do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui é inteligente ao adotar uma estrutura que evita a tentação de mergulhar rapidamente nos incidentes mais intensos e, em vez disso, investe quase metade da projeção na tarefa de estabelecer o cotidiano da família Paiva e, principalmente, na dinâmica do casal formado por Eunice e Rubens, lançando um olhar cuidadoso sobre o calor humano e a harmonia que definiam a família. Cúmplices, apaixonados e felizes, Rubens e Eunice reconhecem a natureza do país em que vivem, mas se esforçam ao máximo para que esta não invada a realidade dos filhos, criando um lar repleto de música, risos e abraços que dividem também com os muito amigos. Pai presente, com um sorriso sempre doce para suas crianças (mesmo aquelas que já não são) e palavras carinhosas para a esposa, Rubens é vivido por Selton Mello como um homem que descobriu sua vocação na paternidade e sua paz no casamento, parecendo ter deixado no passado a frustração pelo mandato parlamentar cassado – e a palavra-chave neste caso é “parecendo”, bastando observar suas ações em diversas passagens do longa para perceber que de algum modo se mantinha ativo no combate aos abusos dos militares.
Aliás, outra decisão fundamental do roteiro e de Salles é a de ancorar o ponto de vista da narrativa ao de Eunice, que registra movimentos e conversas do marido sem no entanto se envolver de modo mais direto – algo claramente intencional por parte de Rubens, que assim mantém a esposa e os filhos protegidos de algum modo enquanto permite que esta preserve a normalidade no dia a dia da família. Neste sentido, a performance de Fernanda Torres é brilhante ao evocar a inteligência de Eunice, evitando assim que esta soe tola ou ingênua por não ter conhecimento acerca das atividades do companheiro. Demonstrando a vulnerabilidade compreensível da personagem ao temer pela segurança da filha de 15 anos (também levada pelos militares) e pela própria durante os 12 dias que permaneceu isolada nos intervalos dos interrogatórios, a atriz é igualmente bem-sucedida ao exibir a força daquela mulher ao lutar para que os representantes da ditadura revelem o paradeiro do marido enquanto se desdobra para cuidar de cinco filhos depois de perderem a única fonte de renda, que vinha das atividades profissionais de Rubens.
Impecável em seu trabalho de recriação de época, Ainda Estou Aqui acerta tanto nos elementos maiores (carros, figurinos, músicas) quanto nos detalhes (como o uso de coca-cola para o bronzeamento e gírias empregadas), tornando o universo do filme palpável – contribuindo muito para a tarefa a belíssima fotografia de Adrian Teijido, com o uso de grãos mais grossos nas cenas ambientadas na década de 70 (a maior parte da narrativa) e a suavização gradual destes à medida que a história avança no tempo, saltando também com eficiência entre as sequências com paleta mais quente, geralmente envolvendo o cotidiano da família Paiva, até a escuridão total que envolve Eunice quando está sendo interrogada no DOI. Além disso, as passagens registradas pela câmera Super 8 de Veroca (Herszage) acrescentam um tom perfeito de nostalgia à experiência.
De forma similar, é notável como Salles alcança o equilíbrio ideal ao retratar os capangas da ditadura, escancarando sua frieza e crueldade ao mesmo tempo em que evita a caricatura, que pelo ridículo tende a fragilizar a realidade do que estes canalhas eram (como fez o pavoroso Garrincha – A Estrela Solitária com seus vilões que chegavam dizendo “Nós somos do DOPS! Uahahahahaha!”). Evitando pintar aqueles indivíduos como monstros que já nasceram com o desejo de machucar o próximo, o filme deixa claro como com frequência se tratavam de profissionais da tortura criados, condicionados e recompensados pelo sádico sistema da ditadura – e como ao menos parte daqueles operários da repressão cumpria ordens por temor ou necessidade. É uma abordagem bem mais aceitável do que a de O Que É Isso, Companheiro?, por exemplo, que de modo inacreditável tentava humanizar um torturador – uma decisão que, em vez de sugerir empatia, gritava irresponsabilidade histórica e mesmo certa crueldade para com os que estiveram nos porões do DOI-CODI.
Ilustrando também como agir com cortesia/civilidade à espera de que estas fossem retribuídas com o mínimo de humanidade era um exercício fútil, Ainda Estou Aqui honra a valentia de Eunice demonstrada por sua determinação em não permitir que o regime militar eliminasse o amor de sua família pela vida ou apagasse a memória de Rubens, transformando seu sorriso em desafio e sua persistência em arma. Cientes de que a fria realidade vivida pela família Paiva elimina qualquer necessidade de encenação melodramática, Salles e seu fabuloso elenco (não há um elo fraco sequer no filme) adotam um estilo minimalista em que muito é comunicado por um tremor do queixo, uma hesitação ao completar uma frase ou um olhar de insegurança – e quando Eunice olha ao seu redor enquanto os filhos tomam sorvete no mesmo espaço que antes frequentavam com Rubens, a sensibilidade de Fernanda Torres em um dos raros closes do longa é o bastante para que saibamos o que ela está pensando e sentindo, sendo devastador perceber como o mundo parece seguir em frente sem se dar conta de que tudo o que mais importava àquela família foi destruído de um momento para outro. Igualmente poderoso, vale apontar, é o travelling que percorre a casa vazia dos Paiva e que em cada móvel ausente expõe anos de histórias, risos, afetos e sonhos. E como é triste e simbólico perceber como as janelas da residência da família, que antes se abriam para o mar, agora são obstruídas por prédios acinzentados.
Incluindo duas grandes elipses que se revelam recompensas dramáticas excepcionais, Ainda Estou Aqui primeiro atinge o espectador ao transformar a emissão de uma certidão de óbito em motivo de celebração e, em seguida, ao concluir o arco de Eunice com a ajuda essencial de uma das maiores atrizes que o Cinema já produziu, Fernanda Montenegro, comunicando o acúmulo de dores e conquistas de toda uma vida sem dizer uma única palavra (e o fato de ser mãe de Torres e dividir com esta tantas características físicas só acrescenta à narrativa).
Mas talvez a maior prova do fracasso do regime militar seja testemunhar como, depois de golpeada de modo tão brutal, Eunice não apenas ajudou a transformar Rubens Paiva em um símbolo de resistência que hoje batiza ruas e é representado por estátuas como se tornou, ela própria, um exemplo de como negar aos fascistas a vitória final, sendo celebrada por sua luta e vendo sua família se expandindo ao longo das décadas, chegando aos seus últimos dias cercada por filhos, netos e bisnetos.
Que tenha morrido pouco depois da eleição de um defensor da ditadura, por outro lado, depõe não contra sua trajetória, mas contra nossa memória coletiva. Algo que, sonhemos, aos poucos será corrigido para que o país faça jus ao sacrifício que tantos fizeram por nossa liberdade.
28 de Novembro de 2024
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