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Críticas por Pablo Villaça

O Agente Secreto
O Agente Secreto

Dirigido e roteirizado por Kleber Mendonça Filho. Com: Wagner Moura, Tânia Maria, Gabriel Leone, Carlos Francisco, Robério Diógenes, Hermila Guedes, Thomás Aquino, Isabél Zuaa, Igor de Araújo, Ítalo Martins, Roney Villela, João Vitor Silva, Kaiony Venâncio, Luciano Chirolli, Gregorio Graziosi, Joálisson Cunha, Maria Fernanda Cândido, Alice Carvalho e Udo Kier.

Um dos aspectos mais fascinantes em acompanhar a evolução da carreira de um cineasta é perceber não apenas o desenvolvimento de seu estilo visual e narrativo, mas também identificar os temas que lhe são caros e a maneira como a abordagem destes temas se transforma ao longo do tempo. Na trajetória de Kleber Mendonça Filho, por exemplo, alguns elementos recorrentes se destacam: o questionamento do status quo e, principalmente, a forma como este sistema tenta se impor e oprimir aqueles que não detêm o poder; uma nostalgia palpável em relação aos espaços urbanos, particularmente Recife; e um amor profundo pelo cinema e sua história. Todos estes elementos convergem de maneira orgânica, bela e eficiente em O Agente Secreto, seu mais recente trabalho exibido na mostra Competitiva do Festival de Cannes de 2025.


Aliás, a projeção já começa estabelecendo um tom profundamente nostálgico: ambientado em 1977, o filme abre com imagens estáticas que remetem a obras do cinema brasileiro da era, à televisão da época, a figuras como Chacrinha e Os Trapalhões, às novelas – uma fascinação pelo período histórico que se estende à própria identidade cultural brasileira. Esta fascinação é refletida de certo modo pelo protagonista interpretado por Wagner Moura que, viajando de carro, estuda as frases escritas nos para-choques dos caminhões que vê na rodovia e encara com curiosidade divertida a fantasia do folião que o aborda em certo trecho da estrada – detalhes que revelam o interesse do próprio cineasta pela cultura popular em suas múltiplas manifestações. De forma similar, é significativo como o letreiro que abre a narrativa descreve aquele período como sendo de "muita pirraça" – eufemismo que estabelece um tom que, embora reconheça a seriedade e a complexidade daquele momento histórico, sugere também certa irreverência que ressoa na ambientação carnavalesca de Recife e na personalidade de vários dos personagens que conheceremos nos 158 minutos seguintes, funcionando como uma espécie de chave de leitura para a abordagem que o filme adotará.

Escrito pelo próprio Kleber, o roteiro gira em torno de Marcelo (Moura), um homem que retorna a Recife com uma identidade falsa que foi forçado a adotar por razões que compreenderemos ao longo da projeção – e que, sem saber, é perseguido por dois matadores profissionais. Determinado a reencontrar o filho pequeno depois do falecimento de sua companheira Fátima (Carvalho), Marcelo planeja buscar a criança para que possam morar em outro lugar, algo que entristece o compreensivo avô do menino, Seu Alexandre (Francisco). Há, claro, várias outras subtramas (envolvendo inclusive uma perna encontrada no estômago de um tubarão), mas, ainda que contenha elementos de suspense e ação, O Agente Secreto tem como principal força não a história em si (por mais que esta seja interessante), mas sua ambientação.

Neste aspecto, é importante notar como o roteiro não se submete às convenções estruturais ditadas por “gurus” da área, que exigem que cada cena faça a história avançar; para Kleber, se uma cena revela algo sobre o personagem ou sobre o período histórico, isso já justifica sua inclusão. Esta é uma estratégia narrativa que fica evidente logo na sequência inicial, quando vemos o protagonista parando em um posto de gasolina à beira da estrada e descobrindo um cadáver no local – um anônimo que tentou assaltar o estabelecimento dias antes, foi baleado por um dos funcionários e permanece ali porque a polícia, ocupada com o carnaval, não apareceu para remover o corpo, ao passo que os donos do posto simplesmente não respondem aos chamados ansiosos do funcionário. Com isso, o pobre atendente (Cunha) é forçado a conviver com o cadáver em decomposição enquanto espanta os cachorros que atacam o corpo e tenta lidar com o odor insuportável que este exala.

Aparentemente desconectada da trama principal, esta cena é na realidade essencial por sintetizar um dos temas centrais do filme: a naturalização perversa da violência, típica de períodos autoritários, quando a lógica de opressão e repressão que parte do topo da hierarquia política acaba sendo refletida nas camadas mais baixas, comprovando a velha máxima de como "o problema não é apenas o cara lá em cima, mas o guardinha da esquina" – e não é à toa que um dos dois policiais rodoviários que abordam o protagonista ao longo desta introdução traz uma mancha de sangue em seu uniforme. Aliás, igualmente relevante é que o estabelecimento se chame "Posto São Luís", já que posteriormente o histórico Cine São Luiz, em Recife, se tornará cenário fundamental da narrativa. Como se não bastassem todas estas funções, a cena ainda apontará outra característica que atravessará a obra: a corrupção endêmica no período, especialmente entre figuras de autoridade.

Passada esta brilhante introdução, o núcleo da narrativa se estabelece quando Marcelo é recebido em um pequeno prédio que funciona como refúgio para pessoas que se encontram na clandestinidade por um motivo ou outro e que é administrado por Dona Sebastiana, uma quase octogenária vivida pela carismática, adorável e divertida Tânia Maria – e a trajetória passada desta personagem, que é apenas aludida em alguns instantes, torna quase imperativo que um spin-off venha a trazê-la como centro. Aliás, os moradores do edifício Ofir representam um microcosmo das brutalidades inspiradas por preconceitos, machismo estrutural e ideologias fascistas, incluindo uma dentista ameaçada pelo ex-marido, um casal de exilados angolanos e um jovem simples do interior que teve que fugir do pai e do tio por não ser “o tipo de homem que eles queriam” – e O Agente Secreto deixa claro como cada uma daquelas pessoas poderia protagonizar seu próprio filme, demonstrando como o Cinema de Kleber Mendonça é humanista por excelência e reconhece como a vida não tem personagens secundários. Assim, não é surpresa quando o filme se detém para expor a frustração de Hans (Kier), um alfaiate cujo passado trágico se torna espetáculo para um delegado que sequer o compreende, ou para testemunhar a emoção de Seu Alexandre ao descobrir algo que a filha disse ao seu respeito – cenas que, mais uma vez, provavelmente seriam descartadas por um realizador menos sensível.

E é por refletir esta humanidade tão admirável que a performance de Wagner Moura se torna tão essencial: encarnando Marcelo como um homem movido por uma decência inata, o ator transforma o olhar do protagonista em um farol que ajuda o espectador a enxergar a beleza de coisas e pessoas que talvez ignorássemos, do já mencionado folião à beira da estrada até a paisagem urbana vista pela janela do Cine São Luiz, passando pela simplicidade do jovem Clóvis, pela valentia de Dona Sebastiana e pela inocência do próprio filho (e a conversa que mantém com a criança no carro, ainda na primeira parte da história, já é suficiente para que nos apaixonemos por aquele pequeno núcleo familiar). Demonstrando curiosidade pelas pessoas de modo geral, Marcelo parece estar sempre disposto a se surpreender com o comportamento humano, seja ao ouvir o relato do frentista do Posto São Luís, seja ao apontar como um casal está aproveitando o escuro do cinema São Luiz para atividades alheias ao filme projetado. Igualmente importante é constatar a determinação disfarçada por seus modos gentis – e a maneira polida mas insistente com que ele corrige o delegado Euclides (Diógenes) ao afirmar não ser policial é a síntese perfeita do personagem.

E já que mencionei a interação entre Marcelo e o filho, cabe salientar como O Agente Secreto emprega este tipo de relação praticamente como elemento estrutural da narrativa, contrapondo diversos pares/trios de pais e filhos: além do protagonista e seu pequeno Fernando, há a dupla de matadores formada por Augusto e Bobbi (Villela e Leone); o delegado Euclides e seus assistentes/filhos Sérgio e Arlindo (Araújo e Martins); e, claro, o corrompido empresário Ghirotti e o filho (Chirolli e Graziosi). A contraposição (ou, em alguns casos, complementação) entre estes grupos não é acidental, obviamente, servindo para explorar a rigidez estrutural de um sistema que sempre busca se preservar através da perpetuação do poder político/econômico e da manutenção das hierarquias/desigualdades de classe – além, claro, de ressaltar a importância da transmissão de valores entre gerações, que podem ser de violência ou de profunda decência, dependendo da influência exercida.

Pontuado pelo senso de humor peculiar do cineasta – frequentemente mórbido e cimentado por referências cinematográficas –, o filme equilibra o peso de seus temas através de piadas mais sutis (como a aparência do delegado Euclides ao atender um chamado, quando a boca suja de batom e o confete no cabelo apontam o que estava fazendo) e outras impossíveis de ignorar, como ao comentar a invencionice do imaginário popular ao introduzir um interlúdio calcado no gênero de horror (com direito inclusive ao grito Wilhelm). Aliás, esta não é a única homenagem à Sétima Arte, já que Kleber inclui também menções a obras como A Profecia e – ainda mais apropriadamente – Tubarão (e não consigo deixar de considerar o uso do split focus em determinado momento como uma citação de cineastas como Brian De Palma, John Carpenter e Martin Scorsese). Para completar, há a nostalgia da recriação das salas de espera dos antigos grandes cinemas de rua, com a exibição de stills e cartazes de lançamentos futuros, e as visitas à sala de projeção do São Luiz – cujo projecionista, Seu Alexandre (homenageado em Retratos Fantasmas), aqui inspira um personagem homônimo e que também se mostra um avô carinhoso e dedicado.

Revelando gradualmente uma estrutura que trabalha em duas linhas cronológicas distintas (algo que inicialmente pode parecer arbitrário, mas que acaba por se justificar plenamente), O Agente Secreto conta com uma montagem (assinada por Matheus Farias e Eduardo Serrano) repleta de transições inteligentes que vão de brincadeiras inesperadas (como o salto entre a instrução dada a um matador e o primeiríssimo plano de um personagem com a boca aberta) e outras que revelam informações importantes de forma econômica (como ao justapor dois personagens contando dinheiro), sendo hábil também ao imprimir ritmo e energia à narrativa sem que isso sacrifique passagens que compreendem a necessidade de uma desaceleração para que o espectador se aproxime dos personagens (como na cena em que os moradores do Ofir se reúnem para uma celebração) e absorva a atmosfera do período.

O que nos traz à magistral direção de arte de Thales Junqueira, que não se limita a recriar a época investindo em seus mínimos detalhes (capas de revista, placas, carros, anúncios, móveis, objetos de decoração), mas se preocupa especialmente em capturar um tom muito específico que compreende como a nostalgia colore nossas memórias e cria versões próprias do passado – e nosso mergulho naquele universo se torna ainda mais completo graças à utilização das lentes anamórficas Panavision pela diretora de fotografia Evgenia Alexandrova e que resulta numa razão de aspecto de 2.39:1 que, projetada numa tela grande, atua quase como uma máquina do tempo.

A eficácia desta imersão no fim dos anos 70 é tamanha, diga-se de passagem, que a incorporação de elementos contemporâneos pela trama acabam por soar não como anacronismos, mas como comentário sobre a atemporalidade de certos aspectos da sociedade: ao recuperar/recontextualizar a tragédia recente envolvendo o menino Miguel, que morreu depois que a patroa de sua mãe o deixou sozinho em um elevador rumo à cobertura do prédio, Kleber ecoa uma frustração necessária – mesmo raiva – diante de uma elite econômica que segue recebendo tratamento preferencial e proteção por parte de um sistema que trata as camadas mais pobres da população como subcidadãos. Ao mesmo tempo, o diretor expõe a hipocrisia de um empresariado que, beneficiando-se constantemente de subsídios estatais (isto quando não aumenta seus ganhos através de desvios e superfaturamentos), se opõe veementemente a qualquer tipo de política social, julgando absurdos o financiamento de pesquisas em universidades públicas, de programas para combater a fome ou de projetos culturais.

Neste sentido, uma outra característica interessante de O Agente Secreto reside no fato de - diferentemente da maioria dos filmes brasileiros ambientados no período – concentrar sua atenção não em relatos da luta contra a ditadura e das barbaridades cometidas nos porões do DOI-CODI, mas na corrupção endêmica do regime militar. Esta é uma preocupação importante que desmonta a visão romantizada de uma extrema-direita fascista que insiste no discurso da ditadura como um período de "limpeza ética", já que se tratou na verdade de uma época de corrupção ampla e irrestrita protegida pela censura que impedia tanto a investigação quanto a exposição destes crimes pela mídia.

Amarrando a narrativa de modo emocionante ao refletir como um dos legados mais tristes daquela época “cheia de pirraça” foi a destruição de núcleos familiares e a interrupção de vidas e histórias que tinham muito a contribuir com o país, o filme ecoa neste aspecto obras como o recente Ainda Estou Aqui e ressalta como a preservação da memória (individual e coletiva) é algo fundamental – um tópico que, entre outras coisas, justifica estruturalmente as duas linhas narrativas cronológicas que o longa estabelece.

O Agente Secreto é uma obra-prima.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2025

18 de Maio de 2025

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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