Seja bem-vindx!
Acessar - Registrar

Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
06/10/2003 18/02/2005 1 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
106 minuto(s)

Garrincha: A Estrela Solitária
Garrincha: A Estrela Solitária

Dirigido por Milton Alencar Jr. Com: André Gonçalves, Taís Araújo, Henrique Pires, Alexandre Schumacher, Ana Couto, Chico Diaz, Jece Valadão, Marília Pêra.

- Nós somos do DOPS. Uahahahahahahahaha!


Não, não estou brincando: quando os agentes da temida força de repressão da Ditadura militar invadem a casa de Mané Garrincha, em certo momento desta cinebiografia, a frase acima (com direito a gargalhada sinistra e tudo mais) é dita pelo líder da equipe – um sujeito com dentes apodrecidos que, para frisar ainda mais sua maldade, esmaga um passarinho com as mãos e atira no cachorro do dono da casa. A cena, aliás, é conduzida de forma tão absurdamente ruim que já merece figurar entre os momentos mais constrangedores da recente produção cinematográfica brasileira, como a pavorosa noite americana de Lamarca, o `Mudei de idéia!` proferido por um dos policiais assassinos de Carandiru, o `Não moooorrraaaa!` gritado pela heroína de Olga e... bom... por praticamente qualquer segundo de Histórias do Olhar.

Infelizmente, aquela não é a única cena horrenda de Garrincha- Estrela Solitária, um filme que parece determinado a testar a paciência e o bom gosto do espectador até o limite do suportável. E, assim como o triste desperdício representado por Alexandre, este longa consegue a proeza de transformar a vida do lendário Garrincha em uma experiência insossa e chata. Ora, seria de se esperar que qualquer cineasta com um mínimo de talento (ou senso comum) fosse capaz de extrair uma narrativa no mínimo interessante da trajetória do jogador, que, depois de uma infância miserável, transformou-se em um dos maiores ídolos do país, ganhando fama internacional, conquistando mulheres belíssimas e desempenhando papel fundamental na conquista de dois títulos mundiais que até então haviam representado um sonho inalcançável para os brasileiros – isto tudo até afundar no alcoolismo e morrer novamente na miséria e no semi-esquecimento. Um arco dramático de ascensão-apogeu-decadência clássico, cinematográfico por natureza.

Porém, entre todos os elementos da vida de Garrincha, o único que parece realmente interessar ao diretor Milton Alencar Jr. e ao roteirista Rodrigo Campos (inspirados em livro de Ruy Castro) é aquele que diz respeito às conquistas amorosas do personagem-título. Aliás, as cenas de sexo espalhadas pela projeção são tantas que o protagonista poderia perfeitamente ter sido rebatizado como Dirk Diggler sem maiores problemas. Exalando uma aura de pornochanchada, o filme mostra-se obcecado com as transas (e a bunda) de Garrincha, como se, de alguma forma, pudéssemos mergulhar em sua alma ao vê-lo lambendo os corpos de suas várias amantes de mamilos rijos. (Uau. Já posso começar a escrever sobre filmes pornográficos!) O fato indiscutível é que, ao contrário do que ocorria em produções como A Última Ceia ou Código 46, as (muitas, inúmeras, excessivas) cenas de sexo vistas em Garrincha – Estrela Solitária não contribuem em absolutamente nada para a narrativa ou a compreensão dos personagens, funcionando como uma exploração barata e desprezível dos corpos de seus atores. (Até mesmo ao enfocar uma estátua, o diretor faz questão de exibir um close dos genitais esculpidos em pedra, o que me obriga a aconselhar um psiquiatra para o sujeito.)

Enquanto o festival da carne toma conta da tela, o próprio Mané Garrincha transforma-se numa figura apagada, sem personalidade ou carisma. Sem conseguir estabelecer qualquer tipo de vínculo com o público, o jogador apenas ocupa espaço nas cenas, sem jamais se apresentar como parte ativa da narrativa. Afinal de contas, quem era Garrincha? Um sujeito irreverente? Fraco? Presunçoso? Irresponsável? Egoísta? Que papel sua infância miserável desempenhou em sua vida adulta? Aliás, sua infância foi feliz? Ele ao menos tentava ser uma figura presente na vida de seus muitos filhos? Ou os ignorava? E o que o levou à bebida? Por incrível que pareça, o roteiro não se importa sequer em abordar alguns dos principais acontecimentos de sua vida, como o acidente de carro que matou a mãe de Elza Soares e o levou a ser condenado a dois anos de prisão.

Já o ator André Gonçalves, embora não seja o único culpado pela falta de brilho com que Garrincha é retratado, contribui para o fracasso da empreitada, a começar por sua narração equivocadamente oscilante (não era necessário assumir a voz de um Garrincha quase moribundo para comentar a história). Transmitindo a impressão de não ter feito o dever de casa ao compor o personagem, Gonçalves não exibe personalidade alguma, praticamente limitando-se a dizer suas falas de forma monocórdica e a franzir o cenho em seus closes. (Além disso, fingir-se de bêbado definitivamente não é um dos pontos fortes do ator – o que, neste caso, é uma deficiência grave.) Como se não bastasse, Milton Alencar faz questão de comprometer ainda mais o trabalho de seu protagonista ao incluir diversas imagens de arquivo que mostram o verdadeiro Garrincha, salientando a escolha inadequada de Gonçalves para o papel (para piorar, em certo instante o Garrincha `falso` olha para uma foto do verdadeiro, que surge muito mais velho do que seu jovem intérprete).

Demonstrando uma dedicação enorme ao objetivo de tornar-se o primeiro cineasta brasileiro a vencer um Framboesa de Ouro, Alencar confere um novo significado ao conceito de `direção falha`: revelando-se incapaz até mesmo de mostrar alguém sendo atingido por uma pedra de maneira convincente, ele (`auxiliado` por uma produção capenga) chega ao fundo do poço em recriações ridículas do desfile de carnaval no qual Garrincha foi `homenageado` (a palavra mais apropriada seria `humilhado`) e ao encenar um tapa desferido pelo personagem em Elza Soares (Taís Araújo, a única que se salva neste longa), que é seguido por um `Meu Deus!` que, sinto confessar, sou incapaz de descrever de forma a fazer justiça ao modo desintencionalmente hilário com que é interpretado por Gonçalves. Mas não é só: além de deselegante (em certo instante, a câmera fica movendo-se de um rosto para outro à medida em que os personagens conversam), o trabalho de Alencar é chocante em sua obviedade, como ao exibir a legenda `Rio de Janeiro` mesmo depois de ter enfocado o Cristo Redentor, o Corcovado e a Baía de Guanabara, e, é claro, ao incluir um plano-detalhe cujo único objetivo é mostrar um taxímetro antigo, chamando a atenção do público para o trabalho de recriação de época da produção.

Sem demonstrar o menor interesse pela genialidade do personagem-título nos campos de futebol, Garrincha – Estrela Solitária condena a falta de respeito com que o jogador foi tratado no fim de sua vida, mas não percebe que comete o mesmo erro ao destruir sua história em um filme profundamente equivocado. O resultado é que `estrela solitária` não serve apenas para descrever o protagonista, mas também a cotação que qualquer crítico sensato dará a este longa pavorosamente ruim.

22 de Fevereiro de 2005

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

Você também pode gostar de...

 

Para dar uma nota para este filme, você precisa estar logado!