Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
01/01/1970 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
120 minuto(s) |
Dirigido por Steve James.
Sempre que escrevo sobre um filme cujos realizadores são meus amigos pessoais, inicio o texto com um aviso ético explicando esta relação e salientando acreditar que esta não influenciou minha posição sobre a obra. Infelizmente, não posso fazer o mesmo com relação a Life Itself. Por mais que queira ser objetivo acerca deste documentário, sei que isto é impossível, já que comecei a chorar assim que vi a primeira imagem de Roger Ebert no longa.
A questão é que me tornei crítico de Cinema graças a Roger, a Pauline Kael e a Martin Scorsese. Life Itself tem a produção executiva deste último e gira em torno do primeiro, que, por sua vez, foi imensamente influenciado pela segunda.
Além disso, enquanto escrevo este texto, um bilhete que recebi de Rog encontra-se emoldurado em meu espaço de trabalho no escritório – e basta desviar levemente o olhar para enxergar a foto deste homem fantástico folheando meu livro com olhar atento e gentil. Ao longo dos anos, Roger deixou de ser apenas uma influência e um ídolo; tornou-se um amigo querido e também, de certa forma, meu “chefe”, já que passei a publicar textos em seu site. Vê-lo fragilizado no documentário de Steve James é doloroso não apenas em função da empatia que todos sentimos ao ver alguém sofrendo, mas por trazer lembranças agridoces como a que descrevi em meu blog quando Roger morreu, em 4 de abril de 2013 (data que não precisei consultar para registrar aqui, já que representa um dos dias mais dolorosos de minha vida). Da mesma maneira, ver as transcrições de seus e-mails em Life Itself, com o inevitável “Cheers” ao final, me faz sentir o impulso de reler todas as correspondências que trocamos ao longo dos anos.
Não, não há como ser objetivo em relação a Life Itself.
Como Roger costumava dizer, citando Robert Warshow, “um homem vai ao cinema e o crítico deve reconhecer que é aquele homem” – o que, na prática, implica no reconhecimento de nossa bagagem pessoal e de nossa subjetividade diante da Arte. Eu seria desonesto e trairia os ensinamentos de Rog caso negasse isto. E não nego. Por outro lado, se normalmente eu apenas deixaria de escrever sobre Life Itself, isto se torna impossível por reconhecer, como crítico, a importância de seu personagem-título. Uma importância que, subjetividades à parte, o longa estabelece de maneira inquestionável.
Roger Ebert foi o primeiro crítico de Cinema a receber o prêmio Pulitzer. Começou a exercer a profissão justamente numa época em que a produção norte-americana entrava em seu período mais fértil e ambicioso, quando cineastas como Scorsese e Coppola iniciavam suas carreiras – uma década, como diz alguém no filme, na qual “o Cinema era levado a sério e, consequentemente, também os críticos” (já não é mais assim). Ao lado de seu parceiro Gene Siskel, Roger transformou a crítica em algo popular. Ao longo dos anos, defendeu e praticamente garantiu as carreiras de cineastas como Errol Morris, um dos melhores documentaristas que a Sétima Arte já produziu e que surge em Life Itself afirmando que provavelmente deve sua existência profissional a Siskel & Ebert. E, na fase final de sua vida, Roger converteu-se também em uma lição de persistência, tornando-se um escritor ainda melhor justamente ao perder a voz em função de um câncer que o desfigurou e o impediu não só de falar, mas também de se alimentar.
Dirigido por Steve James – outro que, de certa maneira, teve a carreira impulsionada pela defesa apaixonada que Roger fez de seu excepcional documentário Hoop Dreams -, Life Itself é impiedoso na maneira como retrata os anos finais da vida de seu protagonista, acompanhando seu processo de reabilitação enquanto tenta reaprender a andar (pela quinta vez depois de sucessivas cirurgias) e também procedimentos dolorosos como a sucção para desobstruir seu esôfago. Mas, ainda mais importante, o cineasta não tenta criar aqui uma hagiografia: ao longo das duas horas de projeção, James deixa claro que Roger era um ser complexo e, portanto, repleto de falhas: alcóolatra (em recuperação), arrogante, presunçoso e exibido, ele era capaz de retalhar alguém com palavras e, certa vez, chegou mesmo a roubar o táxi da esposa de seu companheiro Gene Siskel – que se encontrava grávida de oito meses. Por outro lado, como seria o ideal e o esperado de todos nós, Rog foi eventualmente se tornando uma pessoa melhor, um homem não só extremamente generoso, mas capaz de uma autocrítica cortante (como aponta o email que enviou a Marlene Siskel e é lido por esta em certo ponto do filme).
Claro que, para esta evolução, contribuiu imensamente seu casamento com Chaz, a mulher forte e admirável que se tornaria sua companheira tardia (ele se casou aos 50 anos de idade) e uma influência tão forte quanto sua parceria com Gene Siskel (parceria que rende alguns dos momentos mais divertidos do filme). Inteligente, independente e uma verdadeira fortaleza, aquela esplêndida mulher não só ofereceu a Roger a família que ele precisava depois de ter crescido como filho único e perdido o pai tão cedo, mas também o manteve vivo quando o câncer levou sua mandíbula, tomou sua voz e o prendeu a um cotidiano de dores e limitações. Recusando-se a tratá-lo como um inválido (algo que fica claro em vários pontos do longa, quando a vemos confrontando o marido), Chaz foi instrumental para que, no ato derradeiro de sua existência, Roger encontrasse uma vitalidade inacreditável, chegando – e isto jamais deixa de me espantar e comover – a escrever um livro de receitas depois de ter perdido a capacidade de comer.
Não é à toa que, ao longo de Life Itself, vemos figuras como Werner Herzog, Errol Morris e Scorsese manifestando uma admiração irrefreável por Roger – e mesmo já tendo visto Scorsese em dezenas e dezenas de entrevistas sobre todo tipo de tema, esta foi a primeira vez em que o vi emocionado diante da câmera, quando reconta como Ebert & Siskel basicamente o impediram de se matar e reergueram sua carreira quando ele se encontrava deprimido e enfrentando os efeitos das drogas que o haviam levado a uma overdose.
Dono de uma vida memorável que incluiu até mesmo uma surpreendente colaboração com Russ Meyer em De Volta ao Vale das Bonecas, Roger Ebert é retratado em Life Itself com uma honestidade admirável e como o homem fabuloso que era. Perfeito? Não. Mas um escritor maravilhoso, um crítico de Cinema articulado e apaixonado pela Arte e, principalmente, um ser humano capaz de enxergar, no outro, o potencial para surpreender.
Eu amava Roger Ebert. Ainda amo. Morrerei amando. Foi meu ídolo, meu mestre, meu chefe.
E nunca conseguirei me acostumar com o fato de que pude chamá-lo também de “meu amigo”.
12 de Julho de 2014
(Observação: tudo que já publiquei sobre Roger pode ser lido aqui.)
Abaixo, um registro da homenagem que prestei a ele e a Chaz durante o Ebertfest 2013, no palco do imenso e maravilhoso Virginia Theater, em Champaign-Urbana, Illinois.