Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
01/01/1970 | 19/05/2019 | 5 / 5 | 3 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
84 minuto(s) |
Dirigido por Marcelo Barbosa e Aude Chevalier-Beaumel. Roteiro de Marcelo Barbosa, Aude Chevalier-Beaumel e Michele Frantz.
Indianara começa com o fim de uma vida. Enterrada em um caixão barato em uma sepultura sem lápide depois de um cortejo seguido por meia dúzia de pessoas, uma travesti morta num ato de transfobia se torna parte das chocantes estatísticas de crimes de ódio contra a comunidade LGBT no Brasil, onde nada menos do que 320 pessoas foram assassinadas em função de sua identidade de gênero ou orientação sexual apenas em 2018. Dizendo algumas poucas palavras tristes e cansadas de despedida, a ativista transvestigenere (trans e travesti) Indianara Siqueira ocupará, nos 84 minutos seguintes, o centro deste excepcional documentário co-dirigido pelo brasileiro Marcelo Barbosa e pela francesa Aude Chevalier-Beaumel.
Líder conhecida no Rio de Janeiro por sua retórica afiada e modos combativos, a personagem-título logo aparece em um dos espaços-chave da narrativa: a Casa Nem, que, sem cobrar um centavo, abriga pessoas LGBTI (o “i” é de “intersexuais”) que se encontravam em situação de rua e descobrem, ali, um ambiente seguro no qual são amparadas não só com comida, mas afeto e orientação (em certo momento, por exemplo, vemos duas travestis tendo aulas de alfabetização). Há conflitos e desentendimentos, claro, mas as regras de convivência reforçadas por Indianara se encarregam de evitar excessos ao mesmo tempo em que estabelecem uma estrutura quase familiar fundamental para quem há pouco se via desabrigada.
Movendo sua câmera com liberdade pela casa de passagem, os cineastas contrapõem a humildade do lugar, com seus cômodos ocupados por beliches que quase batem no teto, à alegria e à confraternização que ali acontecem, como danças de festa junina, reuniões para discutir ações coletivas e marchas em defesa do direito ao aborto (numa pauta solidária às mulheres) e contra o “governo” golpista de Temer e as tentativas constantes de restringir os direitos LGBT. Prostituta engajada na luta também contra o preconceito voltado à sua profissão, Indianara rejeita certas ofensas dirigidas ao “presidente”: “Temer não é nosso filho. Ele é filho do Cunha.”
Infelizmente, provando como a transfobia é algo impregnado na própria arquitetura social, não é só a Direita que surge como obstáculo às causas da comunidade: filiada ao PSOL, Indianara passa a encontrar resistência dentro do partido, que, usando uma disputa ligada à ocupação da Casa Nem (que, aliás, não tinha relação alguma com a sigla), indefere a candidatura a deputada federal da ativista, que, inconformada, vai a um comício organizado para os outros nomes em disputa e, com uma caixa de som própria, denuncia o abuso (desde então, ela foi formalmente expulsa do partido, mas o documentário foi finalizado antes que isso acontecesse). Por outro lado, ao longo da projeção fica evidente como Indianara e as companheiras contavam com o apoio irrestrito de ao menos uma psolista de renome: a vereadora Marielle Franco, que surge brevemente em um protesto contra Temer e, mais tarde, defendendo com veemência o respeito aos direitos previstos em lei que deveriam se aplicar às pessoas LGBT, mas, na prática, raramente funcionam de fato.
O que acontece com Marielle, como não poderia deixar de ser, é enfocado pelo longa como um imenso baque à protagonista e às suas companheiras - um choque ressaltado pela montagem de Quentin Delaroche, que subitamente revela o cordão policial ao redor do carro perfurado de balas logo depois de um momento de leveza no casamento de Indianara e seu companheiro Maurício, como se buscasse nos lembrar dos riscos constantes enfrentados por aquelas pessoas.
Não que o documentário traga apenas peso; todo aquele enfrentamento diante do perigo de morte não valeria a pena sem celebração da vida. Assim, os diretores acompanham pequenas festas no jardim de Indianara e Maurício (que, no que se torna uma piada recorrente, cuida das galinhas e varre o quintal vestindo somente sunga e sapatos) ou simples instantes de intimidade como uma conversa embriagada e afetuosa do casal. O intrigante é que, apesar do título do projeto, não há realmente uma preocupação em transformá-lo numa biografia, já que descobrimos alguns detalhes da história da ativista quase tangencialmente (ao ler um breve texto num papel velho, ela comenta num tom neutro: “Devo ter escrito isso numa das minhas tentativas de suicídio”); em vez disso, o foco da obra é no cotidiano atual de Indianara, em sua luta e nos riscos que enfrenta, obrigando-a a instalar câmeras de segurança ao redor de casa e a sair à noite acompanhada de seus dois cães de aspecto ameaçador.
No entanto, a cena mais reveladora do filme é aquela que observa a personagem-título e algumas companheiras assistindo à apuração dos votos na eleição presidencial que elegeria Jair Bolsonaro: com expressão de choque e pânico, elas se abraçam, choram e recitam – numa passagem comovente – um solilóquio de resistência ao ódio e homenagem às vítimas fatais da transfobia no país.
É por esta razão que um documentário como Indianara – e a Arte de modo geral – é tão fundamental e ameaça tanto os poderosos: ao ver o horror daquelas pessoas, nenhum espectador com o mínimo de empatia será capaz de ignorar a realidade que vivem; ler posts de desabafo em redes sociais, notícias em portais ou estatísticas de violência jamais se igualariam em força ao simples ato de ver as expressões de terror em seus rostos e ouvir o tremor de suas vozes. Para indivíduos como... bom... como eu, a eleição de Bolsonaro é um sintoma repugnante do atraso moral do país e da eficácia do ódio como estratégia de mobilização, mas, homem branco cis heterossexual, sei que me encontro numa posição privilegiada de condenar este retrocesso sem sofrer uma ameaça cotidiana real; para a comunidade LGBT, contudo, trata-se literalmente de uma questão de vida ou morte.
“As pessoas vão às manifestações, gritam por três ou quatro horas e vão para casa felizes. Quinze dias depois, os políticos aprovam mais leis e outra manifestação é marcada”, diz Indianara, em certo ponto – e a implicação clara é a de que “ir para casa” não é uma opção para milhões de pessoas, já que seus corpos são uma manifestação política constante da qual não podem – nem querem – fugir.
E por que tanto ódio, tanta insistência em condenar e tentar determinar como os outros devem se sentir e amar? Afinal, como a própria Indianara aponta no cemitério, ao enterrar a amiga, aquele é o destino inexorável de todos nós: a sepultura. E os vermes não enxergam cor de pele, status econômico, religião nem orientação sexual.
07 de Junho de 2019
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