Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
04/09/2014 | 01/01/1970 | 3 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Imovision | |||
Duração do filme | |||
125 minuto(s) |
Dirigido por Abel Ferrara. Roteiro de Abel Ferrara e Christ Zois. Com: Gérard Depardieu, Jacqueline Bisset, Paul Calderon, Marie Moute, Shanyn Leigh, JD Taylor.
Bem-vindo a Nova York é um filme que nos obriga a permanecer duas horas presos a um homem abominável. Pior: considerando o que os letreiros iniciais nos informam acerca do desfecho do caso que acompanharemos e também as imagens de uma “América” (leia-se: Estados Unidos) idealizada pela canção que cobre a sequência inicial enquanto vemos imagens de dinheiro e poder, torna-se óbvio que que aquele monstro se mostrará tão indestrutível quanto um Jason Voohrees.
Escancaradamente inspirado no caso protagonizado por Dominique Strauss-Kahn, ex-diretor do FMI, o longa co-escrito por Christ Zois e pelo diretor Abel Ferrara rebatiza o sujeito como Devereaux, veste-o com o corpo gigantesco de Gérard Depardieu e o traz em seu escritório imponente discutindo questões políticas enquanto é atendido por um harém particular diante de colegas de trabalho. Viajando brevemente para Nova York enquanto se prepara para lançar sua candidatura à presidência da França, Devereaux logo se entrega a orgias consecutivas e, não satisfeito, finalmente ataca a camareira de seu hotel, sendo preso no momento em que embarcava de volta ao seu país. A partir daí, sua esposa Simone (Bisset), que vinha preparando sua candidatura, reúne-se ao marido nos Estados Unidos para organizar sua defesa mesmo sem manter quaisquer ilusões a respeito de seu caráter ou de sua inocência.
Retratado por Ferrara como um sociopata que, em duas ocasiões, chega a encarar diretamente o espectador num gesto de desafio para que o julguemos, Devereaux trata as mulheres como meros objetos decorativos que existem para tornar seu cotidiano menos aborrecido, devendo se mostrar dispostas a estimularem seu orgasmo e a serem apalpadas como meros pedaços de carne no instante em que ele assim exigir. Estendendo sua falta de respeito diante do sexo feminino até mesmo à sua filha, cuja vida sexual ele discute de forma grosseira com o namorado desta, o protagonista é um homem que torna-se incapaz de raciocinar assim que enxerga uma mulher atraente, quando, então, entra num piloto automático de impulsos animalescos que exigem saciação imediata – e se o interesse que simula por seus alvos não resulta na entrega de seus corpos, ele não vê qualquer problema em tomá-los à força.
Empregando o primeiro ato para encenar o cotidiano de orgias de Devereaux, Abel Ferrara demonstra, em Bem-vindo a Nova York, uma falta de disciplina que, de certa forma, reflete a de seu protagonista: concebendo longas sequências de softcore nas quais vemos mulheres lindas e nuas se esfregando umas nas outras e também em Depardieu, o cineasta insiste na abordagem mesmo quando seu objetivo já foi cumprido – e ao trazer duas prostitutas que, mesmo depois do programa, continuam a se beijar em direção à saída do hotel, repletas de tesão, o diretor acaba se rendendo à mesma fantasia masculina machista que identifica em seu personagem-título, o que não deixa de ser irônico.
Não que seja possível se igualar ao comportamento de Devereaux, que Gérard Depardieu retrata como um mamífero gigantesco e grotesco que encara o sexo como uma oportunidade de dominar as “parceiras” (eufemismo de “vítimas”, mesmo quando o ato é consensual), disparando ordens e manipulando seus corpos com a gentileza de um Freddy Krueger do sexo. Grunhindo como um animal durante a transa e exibindo uma barriga colossal em sua nudez corajosa, o ator se entrega a um verdadeiro ritual de auto-humilhação a partir do instante em que Devereaux é preso – e, considerando a entrevista que abre o filme e sugere trazer Depardieu falando sobre si mesmo, não é difícil supor que Ferrara use a própria persona do francês como uma forma de embaçar ainda mais a fronteira entre realidade e encenação, promovendo um desconforto ainda maior no espectador.
A longa sequência que se segue à prisão do protagonista, aliás, representa justamente o ponto alto da projeção, surgindo com uma abordagem que beira o documental em seus planos longos, zooms súbitos, “erros” de foco e, claro, na utilização de não-atores recriando ações que protagonizaram na vida real. Por outro lado, Ferrara se perde novamente ao procurar incluir “mensagens” sociais e políticas mais óbvias na narrativa, como ao enfocar um jovem negro que se prepara para se apresentar a um juiz depois que Devereaux deixa o tribunal. Ora, o que o diretor tenta dizer com aquela imagem? Se tenta igualar as posições do negro pobre e do branco rico (mesmo que, naquele instante, este esteja sendo preso), a ideia é absurda; se tenta estabelecer justamente as diferenças entre estes, escolheu o momento errado (já que, de novo, naquele momento Devereaux está sendo punido). Em contrapartida, ele se sai melhor ao adotar certo grau de sutileza na cena em que Simone, vivida com tom de frustração constante por Jacqueline Bisset, parece desistir de conversar com o marido e passa a apontar os erros na decoração do luxuoso apartamento que alugaram para servir de prisão para o sujeito – o que aponta para um descolamento total da realidade que apenas alguém absurdamente rico poderia exibir.
Ou absurdamente frio. E, neste caso, seria difícil encontrar alguém pior do que Devereaux, cuja sociopatia o leva a justificar suas ações com um inacreditável “eu sou assim!” e a minimizar o dano que provoca em suas vítimas ao explicar que “apenas” ejaculou sobre estas. Além disso, sua pose de menino arrependido diante da esposa aponta para uma dinâmica antiga e doentia por parte do casal, já que Simone se encarrega de discutir a defesa do marido sem que este sequer se preocupe em acompanhar os procedimentos, mostrando-se ainda terrivelmente mal-agradecido e cruel mesmo diante de todos os esforços da companheira. E se Jacqueline Bisset se apresenta ainda bela, isto acaba servindo para indicar, também, que os ataques sexuais de Devereaux não são movidos por atração, mas pelo tesão que sente em exercer poder sobre as vítimas, subjugando-as aos seus desejos de macho-alfa que, como tal, acredita ter o direito de ser servido por elas.
Adotando um comportamento autodestrutivo ao cometer outros crimes sexuais enquanto ainda é julgado pelo ataque à camareira, Devereaux beira a estupidez em sua falta de discernimento - e passamos até mesmo a duvidar que alguém assim possa existir, já que é incrível que pudesse ter durado tanto tempo sem ser denunciado e preso. Porém, Bem-vindo a Nova York logo nos acorda para a terrível realidade: como homem branco, rico e influente, Strauss-K... Devereaux escapou da punição e permaneceu livre para fazer outras vítimas, por mais absurdo que seu comportamento pudesse ser. E isto é um reflexo não só de seu poder, mas também de uma sociedade machista na qual todo crime sexual que vitima uma mulher é acompanhado de um “mas” incriminador que sugere alguma parcela de culpa por parte desta.
Assim, é frustrante que um cineasta veterano como Ferrara exiba um interesse tão grande pelo sensacionalismo e pela exploração de sua própria fantasia masculina quanto pela importante ideia que busca discutir. Isto não o torna semelhante a Devereaux, claro, mas cria um paralelo decepcionante.
05 de Setembro de 2014