Datas de Estreia: | Nota: | ||
---|---|---|---|
Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
10/01/2014 | 01/01/1970 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Califórnia Filmes |
Dirigido por Lars von Trier. Com: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgård, Stacy Martin, Shia LaBeouf, Christian Slater, Uma Thurman, Connie Nielsen, Nicolas Bro, Felicity Gilbert.
“Eu descobri minha boceta aos dois anos de idade.”
Ao ler a fala acima, dita pela protagonista de Ninfomaníaca, muitos espectadores provavelmente temerão confrontar um filme polêmico, grosseiro e chocante. Longe disso. Ao contrário do que a campanha publicitária do novo trabalho de Lars von Trier sugere, o longa, embora trazendo cenas de sexo (quase) explícito, só chocará as psiques mais sensíveis, já que é basicamente um estudo de personagem recheado de divagações filosóficas que usa o sexo mais como vinhetas de passagem do que como centro narrativo, criando uma experiência irregular, mas jamais desinteressante.
Escrito por von Trier a partir de sua já notória natureza depressiva, o filme tem início em uma vizinhança melancólica, marrom e chuvosa que, disposta em becos estreitos, exibe o corpo inconsciente de Joe (Gainsbourg). Resgatada por um habitante local (Skarsgård), ela passa a narrar as circunstâncias que a levaram a se transformar numa mulher coberta de sangue e traumas, deixando claro, desde o princípio, que não poupará a si mesma: “Eu sou um ser humano ruim”, afirma já de cara. A partir daí, saltamos para uma série de flashbacks que acompanham a moça da infância à fase adulta, quando passa a encarar o sexo com a diligência de uma vítima de transtorno obsessivo-compulsivo.
Episódico por natureza, Ninfomaníaca emprega a conversa entre Joe e o pacato Seligman (o personagem de Skarsgård) como âncora narrativa, usando as associações livres feitas pelo sujeito como pontes para as novas passagens – ou capítulos – da vida da protagonista. Assim, uma observação sobre a polifonia nas composições de Bach dá origem a um flashback sobre três amantes importantes na vida da garota, ao passo que as (muitas) referências a pescaria com mosca inspiram a mulher a relembrar suas primeiras buscas por múltiplos parceiros em um trem. O curioso é que estas divagações feitas por von Trier acabam se tornando atrativos à parte, mesmo que usadas como meras transições – e ver Seligman diferenciar as pessoas entre aquelas que cortam primeiro as unhas da mão esquerda e as que cortam as da mão direita é algo que eventualmente se converte em passagens que poderiam sobreviver isoladamente sem qualquer problema. De forma similar, é interessante perceber como o filme frequentemente comenta a própria narrativa, como, por exemplo, ao apontar que determinada coincidência na história de Joe é implausível apenas para observar que, para aproveitarmos melhor a experiência, devemos aceitar aqueles absurdos sem questionar.
Surpreendentemente moralista ao insistir em julgar a protagonista por suas obsessões sexuais (ela é a primeira a se condenar por elas), Ninfomaníaca é o reforço que qualquer misógino quer ouvir acerca de suas percepções equivocadas, já que Joe mente sobre o orgasmo apenas para manipular os parceiros, jogando com seus companheiros de cama apenas para mantê-los presos ao seu sexo – e, neste aspecto, é um problema grave que este “Volume 1” aborde apenas metade da trajetória da moça, já que chegamos ao fim sem que um quadro completo sobre Joe seja pintado, o que pode levar o espectador a um julgamento crítico provavelmente equivocado sobre as intenções finais do cineasta, que, aqui e ali, indica ter uma visão mais compreensiva sobre Joe.
É bom notar, por exemplo, como o diretor estabelece, logo no princípio, o prazer que a jovem vivencia ao lado do pai (Slater, delicado em sua composição) ao sentir o vento refrescar seu rosto, estabelecendo que estas sensações físicas de prazer, oriundas de uma brisa, do formato de uma folha ou do sexo, não passam de experiências viscerais de maior ou menor gozo – e que, portanto, adicionar um julgamento moral quando surgem do sexo é algo aleatório, absurdo e injusto. Além disso, von Trier evita ao máximo glamourizar o sexo visto ao longo da projeção, retratando-o de uma forma crua que reflete a percepção da protagonista, que parece encarar o ato mais como fuga ou arma do que como experiência de prazer – e não é à toa que a perda de sua virgindade é enfocada por Ninfomaníaca como algo similar à mais entediante das equações matemáticas: a soma de fatores com dígito único.
O sexo, contudo, é apenas um dos interesses do diretor/roteirista, que emprega a estrutura do filme como ponte para discutir a diferença entre antissionismo e antissemitismo (numa clara referência à polêmica que o envolveu em Cannes, há algum tempo) ou para fazer referências a Edgar Allan Poe, que chega a originar um capítulo em preto-e-branco introduzido por uma passagem de “A Queda da Casa de Usher” e que eventualmente retrata a percepção de um personagem sobre a (falta de) dignidade da morte. Isto, claro, sem esquecer a sequência memorável que traz Uma Thurman como a representação máxima do conceito de “passivo-agressiva” e que resulta num momento de humor extremamente eficaz, ainda que incômodo.
Por outro lado, von Trier irrita em sua insistência de representar literalmente cada discussão entre Joe e Seligman, o que resulta em flashbacks dispensáveis sobre a infância deste último e em breves planos que ilustram passagens da narração (quando o sujeito pergunta “Se tem asas, por que não voar?”, o diretor exibe o insert de um aeromodelo). Estes tropeços, porém, não são suficientes para anular momentos inspirados como aqueles que trazem um grupo de garotas repetindo a máxima “Mea vulva, mea maxima vulva” ou mesmo a sensibilidade ao retratar uma mulher que encara o sexo de forma compulsiva não pelo orgasmo que propicia, mas pela fuga que representa.
O que, no mínimo, é um imenso desperdício de energia e prazer.
15 de Janeiro de 2014