Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
18/03/2011 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
106 minuto(s) |
Dirigido por Abbas Kiarostami. Com: Juliette Binoche, William Shimell, Jean-Claude Carrière, Agathe Natanson, Gianna Giachetti, Adrian Moore, Angelo Barbagallo.
Em Cópia Fiel, seu mais novo longa, o cineasta Abbas Kiarostami adota uma estratégia narrativa intrigante e surpreendentemente eficaz: depois de estruturar a primeira metade da projeção salientando o realismo e o naturalismo da situação e da dinâmica entre os personagens, ele altera a lógica interna do filme na metade final de forma sutil, mas inequívoca, passando a investir num tom que flerta com a fantasia ao estabelecer um fascinante jogo de cena envolvendo a dupla principal. E se uso a expressão “jogo de cena”, é porque há muito da exploração feita pelo brasileiro Eduardo Coutinho em seu longa de mesmo nome na temática aqui explorada por seu colega iraniano.
Com roteiro do próprio diretor, o filme tem início com uma palestra ministrada pelo escritor James Miller (Shimell), que acaba de lançar um livro que defende a importância das réplicas de obras de arte na cultura de modo geral. Presente no evento encontra-se a personagem vivida por Juliette Binoche, que, dona de uma galeria, parece se encantar pelo sujeito, oferecendo-se para levá-lo a um passeio pela Toscana antes que ele parta da Itália. Discordando de certos aspectos defendidos pelo autor em sua obra, ela inicia uma discussão enquanto visitam museus e restaurantes, até que, eventualmente, algo curioso ocorre e eles passam a agir e a conversar como se fossem um casal com 15 anos de matrimônio.
Mas por que eles adotam este comportamento? A possibilidade de que sejam mesmo casados e estivessem apenas se entregando a algum tipo de jogo de sedução torna-se implausível quando nos lembramos de que o filho pré-adolescente da mulher não conhecia o escritor e que tal elaboração seria artificial por natureza. Por outro lado, é perfeitamente possível que ambos passem a interpretar o papel de casados intencionalmente num exercício psicológico ou intelectual depois de assim serem vistos pela dona de um café – mas mesmo esta interpretação exigiria um grande esforço de imaginação em função da maneira abrupta com que a transição ocorre.
Assim, resta uma terceira – e, acredito, mais lógica – possibilidade: a de que os personagens assumam uma dinâmica diferente porque se tornam figuras diferentes cujas histórias passadas combinam elementos de ambas as realidades. E esta alteração ocorreria simplesmente por ser fundamental para a discussão que Kiarostami quer propor (e que Coutinho abordou em seu longa): a de que nossa percepção sobre os personagens (ou sobre a arte de modo geral) não é ou não deveria ser afetada pela constatação de sua irrealidade. As idéias que o filme e o casal apresentam, assim como seus conflitos pessoais, são dramaticamente eficazes e relevantes mesmo que sejam falsos por natureza – e sempre são falsos, já que estamos falando, afinal, de uma obra de ficção, independentemente da versão do casal apresentada pelo filme.
No entanto, para que esta discussão funcionasse, era imperativo que os espectadores fossem surpreendidos pelas mudanças experimentadas pelos personagens – e é aí que o cineasta demonstra sua inteligência ao estabelecer uma lógica consistente durante a primeira hora de projeção apenas para puxar o tapete sob o público em seguida. Para isso, Kiarostami concebe uma narrativa calcada no naturalismo em seus mínimos detalhes, das pausas embaraçadas feitas pelo escritor quando suas piadas não provocam os risos esperados na pequena platéia até a forma com que Binoche esbarra sua bolsa no rosto do sujeito ao removê-la do banco do carro para que ele possa se sentar.
Da mesma forma, o diretor emprega longas cenas que, criadas a partir de planos extensos e estáticos, conferem um ritmo realista às conversas, que também revelam fluidez graças às performances minimalistas, mas precisas, da dupla central: observem, por exemplo, como Binoche completa a piada que Shimell contava a fim de ilustrar um argumento ou o jeito com que interrompe uma frase para reclamar de um pedestre que cruzou à sua frente e certamente constatará a estratégia do cineasta e de seus atores – especialmente ao contrastar estes momentos com outros que ocorrem na segunda metade do filme, quando as performances se tornam mais intensas e exibem propositalmente muletas de interpretação como uma lágrima que escorre solitária pelo rosto da atriz ou a arrogância agressiva com que o ator trata um garçom.
Aliás, não é só o estilo de atuação que sofre mudanças neste ponto da narrativa, mas a própria essência dos personagens: se inicialmente Binoche se mostra insegura diante do escritor e até mesmo reverente (“Não acredito que está em meu carro!”), eventualmente passa a tratá-lo com agressividade e cobranças. Além disso, a quase obsessão de sua personagem com o valor intrínseco de experiências (ou obras de arte) “reais” gradualmente evolui para uma intensa amargura até culminar numa carência emocional óbvia. Em contrapartida, se o escritor a princípio apresenta-se como um homem contido e seguro que valoriza – mesmo que apenas racionalmente – a idéia de “curtir a vida”, esta postura acaba se metamorfoseando em uma atitude ressentida, raivosa e de incontestável imaturidade e egoísmo. Se estas mudanças soam radicais – e são -, é porque, vale repetir, os próprios personagens estão mudando e assumindo novas histórias e personalidades levemente diferenciadas – e é admirável o controle que Binoche e Shimell mantêm em suas atuações, considerando a complexidade da tarefa exigida pela própria estrutura da narrativa.
Mas Cópia Fiel também é admirável em seus aspectos formais, já que Kiarostami freqüentemente concebe seus quadros não só de maneira econômica, mas intensamente evocativa, carregando-os de simbolismos e metáforas. Em primeiro lugar, é notável a lógica visual que ele adota para indicar de forma sutil as pontuações da estrutura; os instantes exatos em que os personagens experimentarão as já discutidas alterações em suas histórias/personalidades/facetas – algo que ocorre justamente nas cenas em que o casal, durante certas discussões, olha diretamente para a câmera e, conseqüentemente, para o espectador. De forma similar, é impossível não se encantar com composições como aquela que mostra o escritor admirando uma moto enquanto vemos Binoche, refletida no retrovisor, questionando estranhos sobre a beleza temática de uma escultura, já que isso espelha justamente as características da dupla naquele momento: ela, romântica e carente; ele, auto-centrado e sempre disposto a partir.
E mais: é curioso notar também como Kiarostami freqüentemente enfoca a dupla interagindo com outros casais (particularmente um recém-casado, outro que parece ter duas ou três décadas de matrimônio e um terceiro já idoso), já que estas duplas acabam refletindo diferentes estágios e facetas da relação mantida pelos protagonistas. Isto fica ainda mais claro quando o escritor é visto diante de uma janela que expõe, ao fundo, a celebração de um casamento – em outras palavras, mais uma projeção de seu passado ou apenas de mais uma versão deste.
Porque, no fundo, não importa se o que estamos vendo são os mesmos personagens que iniciaram a narrativa ou não, já que, de uma maneira ou de outra, todos são projeções ficcionais construídas por Kiarostami. Refletindo o próprio tema discutido no livro visto no filme (e que dá título a este), as diferenças entre original e cópia são negligenciáveis; o que importa de fato é a percepção que temos da obra (ou, no caso, dos personagens) e a maravilhosa reflexão que esta nos inspira.
Observação: esta crítica foi originalmente publicada como parte da cobertura do Festival do Rio 2010.
03 de Outubro de 2010
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