Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
20/02/2009 | 01/01/1970 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Dirigido por Gus Van Sant. Com: Sean Penn, James Franco, Josh Brolin, Emile Hirsch, Diego Luna, Alison Pill, Victor Garber, Denis O’Hare, Joseph Cross.
Envergonhados e humilhados, eles são conduzidos para fora do bar em direção aos camburões da polícia. Uns tentam cobrir o rosto, ocultando suas identidades das câmeras de televisão que parecem determinadas a expor sua “depravação”, ao passo que outros desafiadoramente erguem o queixo enquanto caminham, certos de que não fizeram nada errado e, assim, não têm motivo para temer o julgamento alheio. O crime que levou a polícia a conduzi-los à delegacia? A homossexualidade.
É assim que Milk – A Voz da Igualdade tem início: com terríveis imagens de arquivo que retratam seres humanos sendo discriminados por forças da Lei em função de suas orientações sexuais – e a natureza do preto-e-branco daquelas cenas faz com que instintivamente interpretemos aqueles eventos como algo saído de um passado vergonhoso, como o período da escravidão ou do pré-sufrágio feminino. Algo que, infelizmente, não poderia estar mais errado.
Apresentando-nos em seguida ao seu protagonista e herói, o Harvey Milk (Penn) que dá título à história, o filme introduz o sujeito como um homem de 40 anos de idade que, frustrado por não ter feito nada de relevante na vida e por viver a mentira de não poder assumir quem realmente é em público, decide se mudar para a Califórnia ao lado do namorado, o jovem Scott Smith (Franco). Em San Francisco, o casal abre uma loja de revelação fotográfica na Rua Castro, que logo se tornaria o centro nervoso da batalha pelos direitos homossexuais no Estado. Gradualmente assumindo o posto de líder da comunidade gay, Milk eventualmente decide se candidatar ao posto de “supervisor” da cidade (equivalente ao cargo de vereador, no Brasil), enfrentando três eleições antes de finalmente conseguir se tornar o primeiro homossexual assumido a ser eleito para um cargo público nos Estados Unidos.
Dirigido por um cineasta gay a partir do primeiro roteiro escrito por um jovem que também enfrentou o preconceito e o auto-questionamento provocado por este antes de finalmente se assumir (Dustin Lance Black), Milk já abre sua narrativa com as imagens de arquivo relativas ao assassinato de Harvey Milk e do prefeito George Moscone (Garber) – um recurso covarde que vem se tornando cada vez mais comum em filmes que lidam com a morte de seus heróis e que, infelizmente, parece ter o propósito de evitar que o espectador saia do cinema muito abalado ao já ser informado de cara sobre o desfecho trágico da história à qual irá assistir. A partir daí, somos levados a um longo flashback que narra justamente a trajetória do protagonista até sua morte e que é estruturado a partir da narração feita pelo próprio Milk, que realmente deixou uma gravação com reflexões sobre a possibilidade de ser assassinado em função de seu ativismo político (a gravação pode ser ouvida aqui).
Um dos melhores (se não o melhor) atores de sua geração, Sean Penn encarna Milk como um homem absolutamente consciente da importância de controlar a percepção do mundo exterior sobre sua homossexualidade – e, assim, mesmo que se entregue a trejeitos efeminados auto-conscientes ao confraternizar com os companheiros ou com pessoas de sua confiança, Milk automaticamente assume uma postura mais rígida e conservadora ao lidar com estranhos e com indivíduos que considera hostis. Da mesma maneira, o sujeito revela sua inteligência ao subverter as expectativas de seus interlocutores através de brincadeiras sobre sua própria homossexualidade (“Eu deixei os saltos altos em casa.”) e ao empregar adjetivos pejorativos para mobilizar seguidores em potencial (“Meus companheiros degenerados...”). O mais impressionante, porém, é observar como Penn se livra de todos os resquícios de sua própria personalidade e de seus personagens anteriores ao emprestar seu corpo a uma nova criação que em nada lembra suas demais performances: com uma voz levemente anasalada* que revela uma leve feminilidade apenas ocasionalmente (especialmente quando ele está totalmente à vontade ou profundamente emocionado), o ator encarna Milk como um indivíduo complexo que não se deixa definir por sua orientação sexual, mas sim por sua luta – e é tocante perceber como ele se entrega totalmente a um mar de emoção ao ouvir o resultado da votação que buscava banir vários direitos homossexuais, como se mal fosse capaz de assimilar totalmente a importância do que estava acontecendo e do papel fundamental que desempenhara no processo.
Caminhando na direção oposta ao criar um personagem introspectivo cujas motivações jamais conhecemos ou compreendemos totalmente, Josh Brolin concebe um Dan White humano e complexo, merecendo aplausos por evitar transformar em monstro aquela figura trágica ao seu próprio modo. Patético em sua insegurança e exibindo um leve complexo de inferioridade que se revelará determinante em suas ações futuras, White só assusta de fato quando o acompanhamos num longo plano enquanto caminha entre o escritório do prefeito e o de Harvey Milk, quando sua expressão cerrada e sua determinação impressionam por percebermos o tempo que ele teve para avaliar o que fizera e o que iria fazer, mantendo-se, ainda assim, inabalável em sua cruel decisão. Completando o elenco, James Franco cria um Scott extremamente simpático que se revela crucial ao apoiar o namorado em momentos difíceis de sua vida (embora sua paciência eventualmente – e compreensivelmente – se esgote), ao passo que Diego Luna compõe Jack Lira corretamente como uma criatura carente e instável. Finalmente, Emile Hirsch continua a crescer como ator ao surgir quase irreconhecível como Cleeve Jones, acertando também na intensidade com que o sujeito manifesta suas convicções.
Mas talvez a decisão mais acertada de Gus Van Sant, no que diz respeito ao elenco, tenha sido usar apenas imagens de arquivo para retratar a desprezível Anita Bryant em vez de escalar uma atriz para interpretá-la: usando a religião como arma em prol da intolerância, Bryant divide, com vários supostos “pastores” (como aquele que mencionei em minha crítica sobre O Menino do Pijama Listrado e em meu blog), a convicção de falar por um Deus cruel e preconceituoso que, convenientemente, viabiliza o crescimento da fama e da fortuna de seus mensageiros através dos discursos recheados de veneno que condenam a diferença e a individualidade. Aliás, nunca deixa de me espantar o fato de serem sempre aqueles que alegam representar os interesses divinos que buscam mobilizar os fiéis em cruzadas persecutórias contra seus semelhantes – uma mensagem que considero fundamentalmente contrária a qualquer conceito minimamente razoável de Deus enquanto entidade superior, sábia e defensora do Amor.
Assim, da mesma forma com que tantos ativistas “pró-vida” não hesitam em advogar (ou mesmo planejar) a morte de médicos que praticam o aborto e não compreendem que jogar embriões no lixo é algo que garante apenas que outros seres humanos continuarão a sofrer em função de doenças que poderiam ser curadas através da utilização inteligente destas células, “pastores” como Anita Bryant foram e são diretamente responsáveis por inflamar as mentes influenciáveis de indivíduos que, certos de estarem defendendo os “interesses” de Deus, praticam atos indizíveis de violência contra homossexuais em todo o mundo – isto quando não estão simplesmente tentando garantir que seus irmãos da espécie humana continuem a ser discriminados legalmente através de iniciativas como a Proposta 6 (que Milk ajudou a derrotar) ou a Proposta 8 – que, em pleno ano 2008, foi aprovada nos Estados Unidos com o único propósito de impedir que pessoas do mesmo sexo registrem oficialmente o amor que sentem umas pelas outras.
Enfraquecido por opções dramáticas artificiais que tornam seu clímax decepcionante em relação à maneira sóbria com que a narrativa vinha sendo conduzida até então (refiro-me à última conversa entre Milk e Scott e à maniqueísta utilização da Tosca como rima dramática para o destino do protagonista, estabelecendo uma forçada comparação entre este e o Cavaradossi de Puccini), Milk ainda assim é um filme extremamente importante do ponto de vista político e humano ao expor a manutenção de pontos-de-vista e iniciativas absolutamente anacrônicos e inaceitáveis no século 21. Se não formos capazes de compreender que o Amor, em todas as suas formas e manifestações, é algo a ser cultivado e valorizado em um mundo normalmente tomado pela dor e pela violência, não creio que o futuro seja algo viável para a Humanidade. E não preciso fingir falar em nome de Deus para afirmar isto com toda a convicção.
* O dublador Marco Ribeiro, que normalmente empresta a voz às versões brasileiras dos filmes estrelados por Sean Penn, recusou-se a desempenhar esta função em Milk. Inicialmente, pensei que sua hesitação devia-se à dificuldade do projeto, já que o trabalho de voz de Penn é extremamente complexo ao equilibrar-se delicadamente entre a afetação e a sobriedade – e qualquer leve desvio neste equilíbrio poderia transformar a atuação em algo caricato e risível.
Infelizmente, eu estava errado: Ribeiro recusou o trabalho por ser pastor evangélico. Em sua defesa, ele alega não ter preconceito algum contra homossexuais, embora tenha dito ter “a voz envolvida com outras questões”. Disse, também, que queria apenas “evitar aborrecimentos”, já que muitos membros da comunidade evangélica o condenariam por seu envolvimento na dublagem de Milk.
Em primeiro lugar, Ribeiro escreveu (como informa a matéria linkada aqui), no site de sua congregação, que famílias encabeçadas por membros do mesmo sexo são uma “distorção do que Deus disse sobre o que deveria ser a família” – mais um exemplo de pastores que, em sua inabalável certeza de falarem por Deus, se entregam sem reservas a incitar o ódio entre seus filhos (ou os homossexuais foram criados por Xenu?).
Além disso, mesmo que Ribeiro queira apenas evitar problemas (algo que, como exposto acima, me parece duvidoso), sua atitude conformista diante do preconceito de seus companheiros de credo é covarde e cúmplice – especialmente se considerarmos sua posição de “pastor”, de líder da congregação. Não deveria ele ser o primeiro a iluminar seus “irmãos”, afastando-os do caminho do ódio e da intolerância?
Ao se recusar a dublar Milk, Marco Ribeiro apenas toma uma atitude similar à de Dan White, tirando a voz de alguém que, ao contrário dele, buscava fazer algo do qual seu Deus se orgulharia: promover a harmonia, o amor e a união entre os habitantes deste já suficientemente hostil planeta.
23 de Fevereiro de 2008