Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
12/09/2008 | 01/01/1970 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
120 minuto(s) |
Dirigido por Fernando Meirelles. Com: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga, Danny Glover, Yusuke Iseya, Yoshino Kimura, Don McKellar, Mitchell Nye, Gael García Bernal, Susan Coyne, Sandra Oh, Maury Chaykin, Mpho Koaho.
(Esclarecimento: Quem acompanha o site e meu blog há algum tempo sabe que considero Fernando Meirelles um amigo. Não creio que isto tenha interferido em minha análise de Ensaio Sobre a Cegueira, mas, em nome da ética profissional, tenho a obrigação de informá-los sobre este fato.)
Em certo momento de Ensaio Sobre a Cegueira, um dos inúmeros personagens sem visão reclama, ressentido, dos abusos cometidos pelo inescrupuloso Rei da Camarata 3 e comenta, com o companheiro à sua frente, que o sujeito provavelmente é negro, escancarando seu odioso racismo – e, pior, sem se dar conta de que, ao contrário do caucasiano vilão, é seu interlocutor e confidente quem possui o tom de pele que ele tanto parece desprezar. A beleza desta cena, além do inteligente uso da ironia dramática, reside na força de sua alegoria, pois, nesta sociedade terrivelmente imperfeita em que vivemos, é justamente nossa visão (literal e metafórica) que muitas vezes nos cega para o que realmente importa, distorcendo nossas opiniões em função de preconceitos estúpidos (e existe outro tipo?) que, ao manterem nosso foco no superficial (a cor da pele, a orientação sexual, a etnia), impedem que enxerguemos o real valor daqueles que nos cercam.
Não é coincidência, portanto, que o magnífico livro de José Saramago tenha atraído a atenção do cineasta Fernando Meirelles, que, além de sua clara queda por adaptações literárias, tem uma carreira marcada pelos subtextos políticos e pelo comentário social que permeiam suas obras, do divertido Domésticas ao carregado O Jardineiro Fiel, passando, é claro, pelo jovem clássico Cidade de Deus (ainda não assisti ao seu longa de estréia, O Menino Maluquinho 2, mas me aventuro a supor que talvez seja a exceção que comprova a regra). Escrito por Don McKellar, este Ensaio Sobre a Cegueira representa, neste sentido, a mais promissora oportunidade para que Meirelles desenvolva uma ampla alegoria sobre os rumos que a sociedade ocidental moderna vem tomando – e a distopia aqui apresentada surge como conseqüência de uma misteriosa epidemia de “cegueira branca” que imediatamente mergulha um país não identificado (todos falam inglês, mas o rádio traz um locutor português) no mais completo caos. Não é à toa, aliás, que os angustiantes planos que revelam os habitantes cegos perambulando com insegura lentidão pelas ruas da cidade remetam tão fortemente às produções estreladas por mortos-vivos comandadas por George Romero, já que estas também usam seus monstros como um interessante comentário social.
Advogando a tese de que aquelas pessoas (todos nós, na realidade) já viviam num estado de cegueira antes mesmo de perderem a visão, o filme, assim como o livro, sugere que somente ao perdermos a capacidade do pré-julgamento nos tornamos realmente capazes de estabelecer uma conexão verdadeira com o mundo ao nosso redor – e mais: que a única cura possível para este isolamento auto-imposto (a “cegueira” de Saramago) é o reconhecimento inequívoco de que, afinal, dependemos profundamente uns dos outros e que enxergar de fato o próximo é, acima de tudo, um exercício de tolerância e amor. Aliás, seguindo esta lógica temática (e, claro, as intenções alegóricas da narrativa), é mais do que natural que os personagens não tenham nome, sendo identificados apenas por suas profissões (o Médico, o Contador), por suas relações mais significativas (a Mulher do Médico) ou por suas características mais marcantes (o Garoto Estrábico) – e não é justamente assim que costumamos definir, de maneira simplista e injusta, aqueles que nos cercam?
Curiosamente, Meirelles e seu elenco exibem uma admirável inteligência (e uma boa compreensão das necessidades particulares do Cinema) ao buscarem desenvolver um pouco mais aqueles indivíduos, mas não a ponto de desvirtuarem os propósitos originais de Saramago: assim, ao observarmos o olhar distante da Mulher do Médico (Moore) ao beber vinho enquanto lava os pratos, podemos notar um tédio sutil que talvez indique uma insatisfação significativa com relação à sua vida de dona-de-casa – e isto torna ainda mais complexa sua trajetória ao longo da projeção, já que ela se torna figura fundamental não só na vida do marido, mas também de um grande grupo de pessoas. Da mesma maneira, ao apresentar o Rei da Camarata 3 (Bernal) de maneira rápida como um barman, antes de o encontrarmos no hospício, o roteiro de McKellar consegue humanizá-lo um pouco mais, evitando que o enxerguemos apenas como um monstro unidimensional – o que, somado aos momentos de humor protagonizados por Bernal (como o hilário instante em que imita Stevie Wonder), deixa o personagem muito mais complexo e interessante. Enquanto isso, Mark Ruffalo traz sua vulnerabilidade característica ao papel do Médico, salientando sua mais do que testada dignidade, ao passo que o casal interpretado por Yusuke Iseya e Yoshino Kimura protagoniza o mais tocante arco dramático da narrativa – algo que é salientado pela rima visual das conversas mantidas ao pé de duas fogueiras.
E já que mencionei parte da estratégia visual concebida por Meirelles ao lado do diretor de fotografia César Charlone, seu parceiro habitual, cabe destacar a coragem da dupla ao investir numa abordagem que, ao buscar capturar a confusão dos sentidos dos personagens, poderia facilmente afastar o espectador – algo que, felizmente, não ocorre. Assim, desde sua primeira cena, Ensaio Sobre a Cegueira adota uma câmera oscilante que exibe foco incerto e cria composições assimétricas que muitas vezes cortam atores e cenários pela metade, surpreendendo-nos também ao apostar em reflexos (muitos destes, fragmentados) que tornam a experiência ainda mais inquietante. Mas não é só: adotando uma fotografia que combina a superexposição e uma paleta dessaturada (que beira o preto-e-branco em alguns momentos), o filme não só salienta a tristeza e a decadência de um mundo em colapso como ainda remete à descrição da cegueira branca presente no livro: “como se se encontrasse mergulhado de olhos abertos num mar de leite”. Assim, quando o Ladrão perde a visão, Meirelles usa o farol alto de um carro que passa como início de uma explosão de luz que simula a experiência do personagem, num recurso que se repetirá várias vezes ao longo da projeção.
Contando com a montagem segura do sempre competente Daniel Rezende, Ensaio Sobre a Cegueira também acerta na maneira dinâmica com que retrata a passagem do tempo e a decadência brutal do hospício, cujos corredores cada vez mais tomados pelos detritos funcionam como uma metáfora apropriada do estado de espírito dos personagens. Por outro lado, o plano que mostra uma fruteira contendo três laranjas, no início do longa, peca pela obviedade ao prenunciar claramente o instante em que voltaremos a ver as frutas já consumidas pelo mofo. E já que mencionei um aspecto problemático do projeto, devo dizer, também, que o envolvimento entre o Velho da Venda Preta (Glover) e a Garota de Óculos Escuros (Braga) provavelmente soará artificial para os espectadores que não tiverem familiaridade com o livro, já que é apresentado de maneira súbita demais no terceiro ato.
Aliás, infelizmente, o Velho da Venda Preta jamais consegue se tornar tão rico e interessante quanto os demais integrantes do núcleo principal, o que é uma pena, considerando-se o talento de Glover e a beleza do personagem – e os dois momentos em que ele funciona como uma espécie de narrador se revelam os mais frustrantes da narrativa, já que ele se limita a verbalizar o que o espectador pode ver claramente na tela. Além disso, como estas narrações surgem jogadas ao acaso, acabam se revelando ilógicas e gratuitas, além de totalmente descartáveis (ao que parece, numa versão anterior elas cruzavam toda a obra). O mais triste é constatar que as duas seqüências em questão provavelmente se revelariam bem mais impactantes e mesmo poéticas se surgissem silenciosas, permitindo que interpretássemos sozinhos as expressões dos personagens e os quadros evocativos criados pelo diretor.
É reconfortante, portanto, que Ensaio Sobre a Cegueira contenha tantos outros momentos intocados pela equivocada narração – e a cena em que um grupo de mulheres lava silenciosamente o corpo de uma companheira caída é particularmente eficaz e emocionante, assumindo um tom quase ritualístico, religioso. Da mesma forma, as duas cenas que trazem um verdadeiro ritual de purificação pela chuva funcionam como raros instantes de respiro numa narrativa dominada pela angústia, representando, também, pontos importantes do reencontro que marca uma nova comunhão entre aquelas pessoas e o mundo (a Natureza, a Vida, o Próximo) que as cerca. Finalmente, Meirelles é especialmente feliz ao retratar a transa de dois personagens, quando inclui, em meio aos gemidos de êxtase do casal, planos subjetivos que revelam o mar de luz no qual este se encontra e que confere um tom curiosamente romântico ao ato – o que se contrapõe ao desespero quase animalesco e aos movimentos desajeitados que testemunhamos quando finalmente vemos, à distância, o que está acontecendo. Aliás, o diretor cria também um outro importante contraste ao estabelecer um choque entre a claridade desta transa e a escuridão infernal que cobre o estupro coletivo que virá a seguir.
É um alívio que a narração equivocada e dispensável de Glover não tenha surgido para comprometer também estas fortes seqüências. E quem sabe o DVD não traz a surpresa de eliminá-la também do restante da narrativa? Ensaio Sobre a Cegueira é um filme admirável demais para ser prejudicado por um tropeço tão fácil de ser corrigido.
11 de Setembro de 2008