Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
01/01/1970 | 31/08/2018 | 4 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
95 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Rob Garver. Com a voz de Sarah Jessica Parker.
Pauline Kael escrevia sem autocensura. Apaixonada por palavras antes de amar os filmes e encantada por estes antes de se descobrir crítica de cinema, ela compunha cada texto com uma paixão que muitos profissionais mal conseguem demonstrar uma ou duas vezes em toda a carreira, encarando a tarefa de analisar uma obra como um imperativo moral, ético e humano. Quando amava um filme, se tornava mais do que uma admiradora, defendendo-o com vigor maior do que o de seus realizadores – e graças a ela, por exemplo, Bonnie & Clyde foi lançado pela Warner depois de uma hesitação inicial do estúdio, o que acabou por ser o pontapé inicial daquela que é ainda hoje a era mais rica do cinema norte-americano: a Nova Hollywood. Em contrapartida, um longa que a desagradasse era tomado quase como uma ofensa pessoal, não sendo raras as ocasiões em que, depois de elevar um cineasta ou intérprete às alturas, se via desapontada com seu trabalho seguinte e publicava um artigo que soava como o discurso de alguém traído por um novo amor.
Dona de uma memória prodigiosa, Kael frequentemente estabelecia relações entre filmes ou cenas específicas que eram tão inesperadas quanto brilhantes, forjando diálogos que demonstravam aos céticos como o Cinema é uma Arte viva e em constante evolução, sendo capaz de refletir os males e as virtudes da sociedade com precisão e sensibilidade. E o que lhe faltava em formação teórica sobre a linguagem do audiovisual era mais do que compensado por sua inteligência e por seu talento como escritora; ler Kael é como descobrir ao mesmo tempo uma crítica enriquecida pela subjetividade, uma crônica instigante e um ensaio prenhe de erudição – e não raro representavam uma reflexão que independia do título analisado para despertar o interesse do leitor.
Principal nome da revista The New Yorker por mais de duas décadas, Pauline Kael colecionou admiradores e desafetos tanto na indústria cinematográfica quanto entre seus pares da crítica; sua rivalidade com Andrew Sarris, nome forte do Village Voice e responsável por importar para os Estados Unidos a teoria do autor advogada pelos integrantes da nouvelle vague, era tão intensa que dividiu os profissionais da área em grupos que beiravam a hostilidade entre Sharks e Jets (seus admiradores eram chamados de “Paulettes” e abraçavam o título com orgulho). Para Kael, uma crítica cinematográfica era tão pessoal quanto uma carta de amor ou um orgasmo – algo que seus livros refletiam com frequência em seus títulos insinuantes: “I Lost It at the Movies”, “Going Steady”, “Kiss Kiss Bang Bang” e – o mais divertido – “Taking It All In”.
Esta maneira pessoal de tratar a crítica, revolucionária para a época (ainda que precedida de certo modo por James Agee e Manny Farber, outros dois gênios), trouxe tamanha liberdade para o gênero que finalmente permitiu que a Crítica, quando em boas mãos, se transformasse em seu próprio modo de expressão artística, abraçando o lirismo, o confessional e afastando-a do jornalismo para incluí-la na Literatura. Ao mesmo tempo – e, sim, talvez movida pela rivalidade com Sarris -, Kael se via compelida a defender o Cinema como uma arte coletiva, afastando-se da centralização na figura do diretor e culminando naquele que é um dos ensaios mais brilhantes de sua carreira (ainda que essencialmente injusto), “Criando Kane”, no qual trazia o roteirista Herman Mankiewicz para o proscênio.
(O irônico é que, apesar disso, foi sua defesa ardorosa que ajudou a cimentar as carreiras de autores inquestionáveis como Scorsese, De Palma, Coppola, Altman e Schrader.)
Neste sentido, o documentário What She Said: The Art of Pauline Kael, dirigido por Rob Garver, chega num momento crucial ao apresentar o trabalho desta figura fundamental a uma nova geração em um período no qual o conceito de crítica se expande para o bem e para o mal, disseminando o gosto pela discussão acerca do que é produzido, mas diluindo-a em milhares de veículos em mídias distintas (e nem sempre com o comprometimento necessário). Evitando tornar-se uma hagiografia ao incluir os aspectos menos nobres da personalidade de Kael – e o arquivo com a entrevista de um David Lean magoadíssimo com a crueldade da crítica é especialmente tocante -, o filme traz depoimentos de profissionais que vão de Quentin Tarantino a Paul Schrader, passando por Stephanie Zacharek, Camille Paglia, Alec Baldwin, Molly Haskell e Joe Morgenstern, além, claro, de trechos resgatados de participações da própria biografada em programas como o de Dick Cavett.
Aliás, é também diante de Cavett que o respeito despertado por Kael é ilustrado com generosidade por uma fala reveladora de Jerry Lewis (e que parecerá grosseira ao ser transcrita por não transmitir o tom afetuoso do cineasta; por isso incluo aqui o link para o vídeo – o trecho em questão começa aos 4:19): “Ela nunca disse algo positivo sobre mim. Aquela velha suja. Mas ela é provavelmente a crítica mais qualificada do mundo, pois se importa com o Cinema e com aqueles envolvidos com este. Eu gostaria de poder atacá-la, mas não posso, já que ela é muito, muito competente. Ela sabe do que está falando”.
Mais impessoal do que Life Itself, documentário sobre meu amado Roger Ebert (que, afinal, o acompanhou em seus meses finais de vida), What She Said talvez peque um pouco apenas por não trazer, para a narrativa, a passionalidade característica da personagem-título, adotando um tom que por vezes confunde objetividade com frieza.
Por sorte, há ardor suficiente nas passagens escritas por Kael e lidas aqui por Sarah Jessica Parker para compensar este pequeno e perdoável tropeço.
04 de Junho de 2019
Observação: escrevi uma pequena homenagem a Pauline Kael em setembro de 2001, quando esta faleceu aos 82 anos, e que pode ser lida aqui.
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