Seja bem-vindx!
Acessar - Registrar

Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
05/03/2020 06/03/2020 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Disney
Duração do filme
102 minuto(s)

Dois Irmãos - Uma Jornada Fantástica
Onward

Dirigido por Dan Scanlon. Roteiro de Dan Scanlon, Jason Headley e Keith Bunin. Com as vozes de Tom Holland, Chris Pratt, Julia Louis-Dreyfus, Octavia Spencer, Mel Rodriguez, Kyle Bornheimer, Lena Waithe, Ali Wong, Grey Griffin, Wilmer Valderrama, John Ratzenberger e Tracey Ullman.

“Não é magia; é tecnologia!”, dizia um bordão famoso em um comercial da tevê brasileira há muitos anos. A ideia por trás do slogan, suponho, era fazer uma referência ao terceiro dos três adágios de Arthur C. Clarke, “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”, a fim de promover... um aparelho que prometia queimar gorduras sem que o usuário precisasse se exercitar. Seja como for, o que a Pixar faz em seu novo filme, Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (que tradução horrível de Onward), é uma inversão completa deste conceito, transportando o espectador para um mundo povoado por criaturas fabulescas que, cansadas dos esforços necessários para dominar a mágica, desenvolvem todo tipo de tecnologia para que possam voar, produzir fogo e criar luz sem a necessidade de encantamentos ou cajados sobrenaturais.


Primeiro longa do estúdio realizado sem qualquer participação de John Lasseter, que foi afastado depois de várias denúncias de abuso sexual (para mim, a surpresa mais triste entre os homens expostos pelo #MeToo), o filme gira em torno de Ian Lightfoot (Holland), um elfo tímido e inseguro que acaba de completar 16 anos de idade e recebe, da mãe Laurel (Louis-Dreyfus), um presente deixado pelo pai que nunca conheceu e que trazia a instrução de só ser revelado quando os dois filhos atingissem aquela idade. Empolgado ao descobrir que a surpresa é um cajado mágico que pode trazer o pai de volta à vida por um dia, Ian e o irmão mais velho Barley (Pratt) realizam os procedimentos descritos na carta que acompanhava o objeto, mas quando algo sai errado, eles dão início à tal jornada do título brasileiro em busca de uma pedra que possa corrigir o feitiço.

Como já seria de se esperar em um projeto da Pixar, Dois Irmãos concebe um universo ambicioso em escala e detalhes, explorando as possibilidades abertas pela premissa tanto ao imaginar como uma sociedade daquelas se organizaria quanto ao povoá-la com as mais variadas espécies de criaturas fantásticas. Assim, pequenos dragões se tornam animais de estimação, unicórnios assumem o papel de pestes urbanas (imaginem ratos gigantes com um chifre no meio da testa) e relacionamentos entre espécies/raças são lugar-comum. Ao mesmo tempo, a proliferação da tecnologia é vista como uma força ambígua, tornando a vida mais confortável, mas dando origem às inevitáveis corporações que a produzem e controlam – e é interessante observar o contraste proposital feito pelos realizadores entre o mundo utópico do passado e a sociedade contemporânea que inclui pobreza (como a dos unicórnios) e disparidades de classe (o subúrbio é retratado como uma série de cogumelos colossais e quase idênticos que abrigam o que provavelmente é a classe média desta realidade). Para completar, o design das criaturas é hábil ao estabelecer as diferenças entre os vários tipos ao mesmo tempo em que permite que estes incorporem traços de minorias específicas – além, claro, das vozes, que incluem os mais diversos sotaques.

Trazendo a voz juvenil de Tom Holland, que confere ao personagem a dose certa de hesitação e frustração, Ian se revela o típico protagonista da Pixar: um indivíduo de bom coração que, incerto de seu lugar no mundo (ou preso em uma posição de individualismo), é empurrado na direção de uma aventura que o levará a reconhecer as coisas boas que o cercam e seu próprio valor (Woody, Buzz, Relâmpago McQueen, Nemo, Flik, Merida, Miguel e Garfinho são alguns dos exemplos típicos deste arquétipo). Enquanto isso, Barley é interpretado por Chris Pratt em sua versão Jack Black, que combina humor e uma energia quase maníaca salpicada pela obsessão por algum tema (aqui, a mitologia por trás do RPG que ama) e por sua incapacidade de perceber quando suas ideias não estão inspirando a melhor das reações. Como se não bastasse a ótima dinâmica forjada pelos dois atores, a animação é beneficiada por outra dupla que, numa trama paralela, responde por alguns dos melhores instantes da projeção: Julia-Louis Dreyfus e Octavia Spencer, cujas personagens são um exemplo perfeito da eficiência cômica criada pelo contraste entre tipos totalmente distintos.

Primeira história original do estúdio desde Viva: A Vida é uma Festa, Dois Irmãos é o tipo de aventura cômica que alçou a companhia ao primeiro escalão, brilhando tanto em suas sequências de ação quanto na construção de suas piadas – sejam estas gags visuais inspiradas (como aquela envolvendo uma pintura de dragão) ou originadas em referências inesperadas (quem assistiu a Um Morto Muito Louco, um daqueles sucessos típicos da década de 80, reconhecerá a figura de “Bernie” em certo personagem). Além disso, há vários momentos em que nossa admiração é despertada simplesmente pelo gênio técnico da Pixar, como, por exemplo, no plano-detalhe que expõe o nervosismo do herói através do suor de sua mão.

Mas o mais importante, em última análise, é que estas virtudes existem para servir à história, que, como também é hábito do estúdio, alcança uma força emocional que nem sempre somos capazes de prever antes de sermos surpreendidos por nossas próprias lágrimas – e, em Dois Irmãos, estas vêm do modo como os irmãos processam a saudade que sentem do pai e, principalmente, de uma epifania do protagonista quanto a uma lista que carrega e que é ao mesmo tempo previsível em sua lógica e surpreendente em sua execução.

Incluindo ainda um subtema acerca da importância de preservarmos nosso passado e de aprendermos com este (uma lição que o mundo parece estar ignorando), Dois Irmãos é um lembrete de que quando a Pixar acerta, poucos conseguem se igualar aos seus artistas.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Berlim 2020.

22 de Fevereiro de 2020

(Curtiu o texto? Se curtiu, você sabia que o Cinema em Cena é um site totalmente independente cuja produção de conteúdo depende do seu apoio para continuar? Para saber como apoiar, basta clicar aqui - só precisamos de alguns minutinhos para explicar. E obrigado desde já pelo clique! Mesmo!)

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

Você também pode gostar de...

 

Para dar uma nota para este filme, você precisa estar logado!