Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
30/10/2020 | 23/10/2020 | 5 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Netflix | |||
Duração do filme | |||
93 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Remi Weekes. Com: Sope Dirisu, Wunmi Mosaku, Malaika Wakoli-Abigaba, Javier Botet, Emily Taaffe e Matt Smith.
Há alguns anos, quando escrevi sobre o iraniano Sob a Sombra, iniciei o texto apontando que o Terror é um gênero frequentemente empregado para comentários políticos e sociais complexos que usam monstros e vítimas como símbolos de questões que vão da repressão sexual à desigualdade social – e naquela obra, por exemplo, o djinn, um tipo de demônio da religião islâmica, se materializava usando longos e opressivos hijabs que cobriam o corpo da heroína assim como os teocratas que dominavam o país eliminavam os direitos das mulheres. Já neste O Que Ficou Para Trás, é a vez dos apeth, seres malignos do folclore do Sudão do Sul, assumirem o papel de signos em uma outra discussão cada vez mais relevante: a dos refugiados, estejam estes fugindo do horror na Síria, em Mianmar ou, como neste caso, no país africano.
Escrito e dirigido pelo estreante Remi Weekes, o filme tem início quando o casal sul-sudanês formado por Bol e Rial (Dirisu e Mosaku, excepcionais) consegue, ao lado da filha Nyagak (Wakoli-Abigaba), um lugar em uma embarcação precária que tenta atravessar o Mediterrâneo para chegar na Inglaterra, naufragando no processo e custando a vida da menina e de boa parte dos demais passageiros. Resgatados e presos, Bol e Rial acabam conseguindo o direito de morar em uma habitação oferecida pelo governo britânico enquanto esperam a decisão sobre o pedido de asilo político, o que soa como um sinal promissor – até que fenômenos estranhos começam a ocorrer na casa, sugerindo a presença de um apeth que, por algum motivo, parece querer aterrorizá-los.
Habilidoso ao evocar os sentimentos de confusão, apreensão e angústia dos personagens antes mesmo que qualquer evento metafísico surja na tela, já que os refugiados são forçados a seguir uma série de restrições que tornam seu cotidiano naturalmente sufocante, o jovem cineasta leva o espectador a perceber a desorientação experimentada por Rial naquele país estranho, por exemplo, ao enfocá-la caminhando pelas ruelas entre as casas humildes da vizinhança como se estivesse num labirinto similar ao de O Iluminado, com muros que parecem mudar de lugar como se quisessem mantê-la prisioneira mesmo fora do centro de detenção. Não à toa, ela é quem mais resiste às imposições do novo lar, ao passo que Bol se mostra ansioso para agradar o assistente social que cuida de seu caso (uma pequena e boa participação de Matt Smith).
Os esforços de Bol neste sentido, por sinal, acabam funcionando como um forte comentário sobre o processo de assimilação sofrido pelos imigrantes e que soa quase como uma obrigação para que sejam aceitos – e, mesmo assim, com preconceitos – pelos “anfitriões”. Assim, quando o sujeito vai a um shopping center comprar roupas (sendo, claro, seguido de perto por um segurança cuja desconfiança é despertada pela cor de sua pele), é comovente e frustrante vê-lo buscar vestes idênticas às que surgem num anúncio protagonizado por uma família branca, como se ele quisesse esconder quem é para não espantar aqueles que jamais deixarão de odiá-lo. Da mesma maneira, seu empenho em sorrir para os burocratas que o interrogam é a representação perfeita de como minorias raciais sabem serem vistas como “Outros” pelos brancos e, consequentemente, como ameaças naturais – o que transforma o sorriso em um gesto equivalente ao de erguer as mãos para se mostrar desarmado. Além disso, ao contrário de Rial, que persiste em usar a língua natal (o dinca), Bol raramente abandona o inglês, insistindo para que a companheira siga seu exemplo.
Mas se estes elementos dramáticos já renderiam uma narrativa eficaz, O Que Fica Para Trás aos poucos os encaixa de forma brilhante em uma estrutura de gênero, usando-os como motor do terror que aos poucos se torna mais e mais presente. Fotografado pelo belga Jo Willems (da franquia Jogos Vorazes) com uma paleta triste e sem vida que ressalta os cinzas e drena o verde pálido das paredes da sala na qual boa parte da ação se passa, o filme utiliza as sombras duras para criar pontos de escuridão absoluta nos aposentos e que insinuam ameaças sempre preparadas para o ataque. Como se não bastasse, a combinação do ótimo design de produção e das trocas de lentes da câmera acaba por criar um ambiente que parece se ampliar ou encolher de cena para cena, levando Bol a se tornar sufocado ou vulnerável de acordo com a proximidade das paredes e do teto. Para completar, a própria composição dos quadros já traz implicações poderosas, seja ao manter os personagens deslocados para o canto enquanto o espaço negativo do lado oposto sugere perigos invisíveis, seja ao ressaltar a impressão de claustrofobia, como no instante em que vemos Bol através dos batentes de uma porta que, por sua vez, é vista através dos batentes de outra.
Sem depender excessivamente da trilha sonora para provocar sustos (o que é um alívio, já que este é um dos clichês narrativos mais irritantes do gênero), o diretor investe, em vez disso, numa atmosfera de apreensão que tem início com movimentos e sons pontuais até mergulhar de vez no horror absoluto – e quando o longa faz isso, acredite, é com dedicação absoluta, não deixando pausas para respiro, já que os ataques vão se sucedendo de modo implacável. E o melhor (ou pior, dependendo dos medos do espectador): O Que Fica Para Trás não é uma obra interessada apenas em assustar, mas em provocar aquele arrepio na espinha que é bem mais difícil de esquecer depois que a história termina.
Estes arrepios, claro, têm origem diferente da superficialidade de um salto na poltrona: sua motivação não é visceral, mas emocional e psicológica, vindo da capacidade do filme de transportar o espectador para a situação dos personagens. Isto é alcançado, aqui, pela maneira como Weekes usa o horror real como base do metafísico: os fantasmas que aterrorizam Bol não são apenas manifestações sobrenaturais (embora também o sejam), mas reflexos daqueles que carrega na memória e que nasceram de suas experiências trágicas em seu país de origem ou enquanto escapava deste. Assim, quando vemos rapidamente a imagem de crianças amontoadas na carroceria de uma caminhonete ou os resultados de um massacre em uma escola na vila do casal, compreendemos como Bol e Rial já estavam condenados, com apeths ou não, a uma existência assombrada.
“Depois de tudo que vi, acha que posso ter medo de fantasmas?”, pergunta a mulher para uma médica que a atende em certo momento. A implicação é clara: em última análise, nós somos os horrores uns dos outros, bastando constatar não só a violência testemunhada pelos personagens, mas a crueldade resultante da xenofobia que maltrata aqueles que mereciam acolhimento e compreensão.
E o que torna os segundos finais de O Que Fica Para Trás tão poderosos é a triste confirmação de que pessoas como Bol e Rial são símbolos e testamentos de milhares de outras vidas destruídas pelos seres mais capazes de maldade que a Natureza gerou: os humanos.
14 de Dezembro de 2020
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