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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
17/11/2021 17/11/2021 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Netflix
Duração do filme
126 minuto(s)

Ataque dos Cães
The Power of the Dog

Dirigido e roteirizado por Jane Campion. Com: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons, Kodi Smit-McPhee, Geneviève Lemon, Thomasin McKenzie, Frances Conroy, Peter Carroll, Alison Bruce e Keith Carradine.

Ataque dos Cães é um filme povoado por personagens que não conseguem evitar a solidão mesmo quando cercados por outras pessoas (igualmente solitárias). É uma solidão completa, que parte não das circunstâncias e contextos externos, mas de dentro daqueles indivíduos – seja por temperamento, traumas, cicatrizes, autoproteção ou por todos estes fatores somados. Consumidos pelo vazio que gostariam de preencher com amores ou qualquer traço de afeto, eles expressam suas frustrações de modo particular: este, com uma mudez quase completa; aquela, com a auto sedação alcóolica; um terceiro, através da raiva e da crueldade. Em comum, a incapacidade de articular de maneira produtiva o que buscam ou os motivos que os impedem de iniciar esta busca. É uma obra, em suma, de olhares ansiosos e silêncios dolorosos.


Não é grande ajuda, porém, que estes silêncios sejam quebrados justamente por um homem que emite cada palavra como um projétil envenenado: interpretado por Benedict Cumberbatch com uma frieza que mal consegue cobrir um poço infinito de ressentimentos (muitos voltados contra si mesmo), Phil Burbank encontra certo conforto na rotina que divide com o irmão George (Plemons) há quatro décadas. Responsáveis pelo rancho da família, os dois moram em um casarão no meio de uma ampla planície e dividem um quarto como se ainda fossem crianças – uma proximidade física que em nada reflete o distanciamento cada vez maior provocado por suas personalidades contrastantes. Quando esta velha rotina é quebrada pela decisão de George de se casar com Rose (Dunst), viúva de um médico, Phil faz todos os esforços possíveis para manifestar sua contrariedade e manter a cunhada ansiosa e deslocada em seu novo lar, aplicando a estratégia também ao filho adolescente desta, o tímido Peter (Smit-McPhee).

Concebida pelo designer de produção Grant Major como uma casa cujos grandes espaços se traduzem não em conforto, mas em opressão, a residência da família se torna ainda mais sufocante graças às sombras plantadas pela fotografia de Ari Wegner, que isola os personagens em planos conjuntos que os deixam pequenos e vulneráveis, investindo ainda numa paleta fria que reflete com perfeição o ambiente que carece de todo tipo de calor: o ambiente e o humano. Além disso, as locações vastas da Nova Zelândia (substituindo o que seria o estado norte-americano de Montana em 1925) contribuem para ressaltar a pequenez do universo daquelas pessoas, sendo revelador também como o horizonte é limitado pela cadeia de montanhas em cujos contornos o protagonista projeta uma imagem hostil e ameaçadora.

A complexidade psicológica de Phil Burbank, por sinal, é um dos pontos mais intrigantes do roteiro escrito pela diretora Jane Campion a partir do livro parcialmente autobiográfico de Thomas Savage: visto a princípio como um bruto sem qualquer indício de ambição intelectual, Phil tem na realidade uma formação acadêmica invejável cujos vestígios parece determinado a apagar ao construir uma persona de incivilidade que expressa até ao se negar a tomar banho (a não ser às escondidas no lago que usa como refúgio particular). Assim, por mais que se empenhe em criar uma fachada de “macho-alfa”, há algo de performático no modo como Phil caminha, conversa, se suja e adota o banjo como instrumento mesmo sem demonstrar qualquer prazer em tocá-lo (com exceção do instante em que o emprega para atormentar a cunhada). Apegando-se às poucas relações que tem por ser incapaz de formar novas, Phil exibe, na composição multidimensional de Cumberbatch, uma vulnerabilidade surpreendente no modo como olha para o irmão em busca de afeto e companhia – e é fascinante constatar como, depois de falhar em estabelecer uma conversa com George, Phil imediatamente substitui a afabilidade por agressividade, numa atitude que disfarça sua mágoa através do ataque. (Ainda assim, não é surpresa que ele deixe para demonstrar toda a extensão de sua fúria em animais indefesos, já que permitir que os outros testemunhem sua raiva seria, em sua visão, uma humilhação.)

De modo contrário, George é vivido por Jesse Plemons como um sujeito cujos modos impassíveis mal conseguem encobrir uma profunda melancolia – e talvez um dos momentos mais comoventes de Ataque dos Cães seja aquele em que o personagem se emociona apenas por perceber que não está mais sozinho. Entretanto, as décadas de exílio afetivo cobram um preço ao impedi-lo de reparar como sua devoção a Rose pode tornar-se uma fonte de ansiedade para a esposa (ao não notar, por exemplo, o constrangimento desta diante de sua insistência para que toque piano para convidados). Kirsten Dunst, aliás, oferece uma performance magnífica ao expor a natureza submissa de uma mulher que, ao ver a foto de uma mansão exibida pelo filho, só consegue pensar que é “muita coisa para limpar”. Desintegrando-se rapidamente diante da perversidade de Phil e da falta de apoio de George (incapaz de enxergar o que ocorre sob seu teto), Rose vive num constante estado de aflição por temer também os efeitos que as ações e palavras de Phil podem ter sobre Peter – e Kodi Smit-McPhee faz jus à promessa de suas atuações no início da carreira em Deixe-me Entrar e A Estrada ao incutir uma força surpreendente em Peter que desafia nossa percepção inicial da fragilidade sugerida por sua palidez, por sua magreza e por sua delicadeza.

Não por acaso, é precisamente a coragem do rapaz, que não tenta disfarçar sua natureza para evitar a hostilidade dos brutos que o cercam, que acaba por impressionar Phil – não apenas pela lealdade do jovem para consigo mesmo, mas por abraçar sentimentos que o rancheiro teme assumir e que o levam a se odiar (algo que Cumberbatch evoca com imensa sensibilidade).

Com uma atmosfera carregada que deve muito à trilha dissonante, incômoda, de Jonny Greenwood, Ataque dos Cães é um retrato de como a masculinidade tóxica é uma máscara vestida por homens pequenos e inseguros cujo maior medo é que o mundo descubra sua covardia. E como, na maior parte das vezes, a homofobia é a expressão repugnante da frustração de indivíduos que desejavam ter a valentia e a autenticidade daqueles que insistem em odiar.

17 de Dezembro de 2021

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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