Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
23/04/2010 | 01/01/1970 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Dirigido por John Hillcoat. Com: Viggo Mortensen, Kodi Smit-McPhee, Robert Duvall, Guy Pearce, Molly Parker, Garret Dillahunt, Michael K. Williams, Charlize Theron.
Empunhando alguns lápis de cor, o Menino faz rabiscos distraidamente e sem particular interesse ou alegria, como se procurasse apenas escapar por alguns momentos de sua realidade massacrante – e é só após alguns segundos testemunhando a cena é que nos damos conta do motivo que o leva a investir em traços coloridos sem coesão aparente: nascido e criado num mundo seco e morto, no qual o céu é constantemente cinza, as árvores não têm folhas e a desolação domina a paisagem, o garoto simplesmente não conhece nada que possa reproduzir com cores alegres no papel. É um universo tão triste, na verdade, que tentar explicar o conceito de “Natal” ou “Papai Noel” para o pequeno seria não só uma tarefa difícil, mas um ato de crueldade.
Ambientado numa Terra pós-Apocalipse (cuja natureza jamais é explicada), A Estrada traz rodovias tomadas pelo mato, carros queimados que exibem cadáveres carbonizados ao volante e casas que servem de abrigo apenas para latas de comida estragada. Caminhando com cansada determinação por aquele mundo, o Homem (Mortensen) e seu filho (Smit-McPhee) têm, como objetivo, o litoral – onde talvez um resto de vida se faça presente no mar. Nascido em meio à destruição (que aparentemente tomou conta do planeta pouco tempo antes de seu nascimento), o Menino também é obrigado a conviver com as lembranças da Mãe (Theron), que abandonou a família ao finalmente perder as forças para continuar vivendo naquele deserto hostil dominado pela fome e pelos poucos humanos sobreviventes – muitos dos quais se tornaram canibais.
A partir desta premissa, o roteiro de Joe Penhall, adaptado do belo livro de Cormac McCarthy, explora questões universais como a eterna batalha entre Homem e Natureza e, claro, o contraste entre as necessidades do Indivíduo e da Humanidade. Contrapondo-se à degradação de boa parte de seus contemporâneos, o personagem de Viggo Mortensen mostra-se determinado a ensinar ao filho que, mesmo num mundo à beira do fim, sobreviver não é o bastante; é preciso, acima de tudo, manter a dignidade na luta pela sobrevivência. Esta postura, aliás, torna-se ainda mais admirável justamente por percebermos como seria fácil entregar-se aos impulsos mais animalescos e mesquinhos num contexto no qual uma maçã semi-estragada é item de luxo e no qual uma criança, ao perguntar para o pai por que algumas pessoas cometeram suicídio, recebe apenas a resposta “Você sabe por quê.”.
Assim, é natural que a Mãe (vivida por Charlize Theron numa participação curta, mas intensa) se desespere ao perceber que não consegue mais evitar o parto; afinal, quem gostaria de trazer o filho para um mundo como aquele? O espantoso é que, apesar de todas as tragédias que testemunha tão cedo (ao encontrar mais um cadáver, ele ouve do Pai: “Não é nada que não tenhamos visto antes”), o Menino ainda consiga manter parte da doçura tão comovente das crianças: dono de um imenso coração, ele não apenas se preocupa em não ser inconveniente, chegando a pedir desculpas ao vomitar, como ainda é veemente ao insistir para que o pai não deixe de comer ou beber apenas para que suas rações sejam maiores. Com isso, o garoto exerce, talvez sem perceber, um papel fundamental na vida do Homem ao inspirá-lo a manter a própria humanidade.
Enquanto isso, Mortensen, um ator admirável pela entrega aos personagens, encarna o protagonista com a dedicação habitual: surgindo em cena magérrimo e claramente fragilizado, ele ilustra o amor do Homem pelo garoto já nos primeiros segundos de projeção, quando, ao acordar, o Homem imediatamente leva a mão ao filho num gesto automático de proteção e carinho. Com uma tosse insistente que chega a doer nos pulmões do espectador, o sujeito se esforça para ocultar a própria decadência física do menino, que, como todo garoto, ainda enxerga o Pai como seu guia e herói mesmo que este exiba o esqueleto por baixo da pele emaciada. Porém, talvez o maior mérito da composição de Mortensen resida no fato do ator conseguir transformar a ação de apontar uma arma para a cabeça do filho em um gesto de amor inquestionável, o que ilustra não só seu talento, mas também a beleza da própria narrativa.
Responsável pelo sufocante e fantástico faroeste A Proposta, o cineasta australiano John Hillcoat mostra-se mais uma vez extremamente hábil ao construir, com o auxílio do designer de produção Chris Kennedy e do diretor de fotografia Javier Aguirresarobe, um mundo cujas cores foram praticamente drenadas e que agora parece coberto de cinzas – e até mesmo os tons sempre escuros dos figurinos usados pelos poucos personagens salientam a falta de vida e esperança daquele universo. Da mesma forma, o ótimo design de som ajuda a compor a devastação do planeta através do emprego de ruídos diegéticos como o vento contínuo, o estalo das árvores mortas à distância e, claro, o silêncio opressivo que muitas vezes toma conta da projeção. Além disso, a trilha melancólica de Nick Cave e Warren Ellis consegue salientar sem exagero a tristeza da narrativa, o que é sempre algo bem-vindo.
Despertando indagações de natureza filosófica sem soar pretensioso ou proselitista (não há, por exemplo, uma “mensagem” ecológica ou anti-bélica, já que jamais descobrimos a causa real de toda aquela destruição), A Estrada intriga ao contrastar o sentimento de perda do Homem e a aparente naturalidade com que o Menino enxerga tudo à sua volta: seriam as memórias do protagonista um fardo? Seria melhor não ter aquelas lembranças de um passado feliz e que agora contrastam com o nada no qual habitam? Ou seriam aquelas recordações uma âncora que mantém a determinação do sujeito? De um modo ou de outro, pai e filho ainda compartilham a angústia dos sonhos breves, conturbados e sempre interrompidos que lhes atormentam o sono e que, frutos de lembranças ou de expectativas futuras, parecem mais um fardo do que um alívio temporário das atribulações do mundo real, comprovando que a mente humana é inquebrantável em sua capacidade de construir projeções e símbolos que talvez quiséssemos ignorar.
Presenteando o público com uma quase ponta do veterano Robert Duvall (irreconhecível e magnífico), A Estrada é um filme difícil e angustiante. Mas, talvez mais surpreendente, representa uma experiência profundamente tocante. O que não quer dizer que, ao ouvirmos os sons cotidianos e prosaicos que surgem durante os créditos finais, não nos sintamos incrivelmente aliviados de podermos voltar para nossa realidade imperfeita, mas, agora, mais do que bem-vinda.
23 de Abril de 2010