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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
10/11/2022 28/10/2022 1 / 5 4 / 5
Distribuidora
Universal
Duração do filme
114 minuto(s)

Armageddon Time
Armageddon Time

Dirigido e roteirizado por James Gray. Com: Banks Repeta, Anne Hathaway, Jeremy Strong, Jaylin Webb, Andrew Polk, Tovah Feldshuh, John Diehl, Jessica Chastain e Anthony Hopkins.

Ocasionalmente, surge no Festival de Cannes um filme que provoca uma espécie de delírio coletivo e que, por uma razão ou outra, acaba por conquistar parte considerável da crítica e do júri, recebendo elogios e prêmios que pouco depois se tornam uma lembrança embaraçosa para todos os envolvidos, como ocorreu há poucos anos com a inexplicável Palma de Ouro concedida a Dheepan. Em 2022, isto parece estar ocorrendo com o novo trabalho de James Gray, o semi-autobiográfico Armageddon Time, uma obra medíocre como narrativa, juvenil como mensagem social e tremendamente classe média em sua satisfação com a própria consciência sobre os males do mundo.


Escrito pelo próprio Gray, o roteiro gira em torno do jovem Paul Graff (Repeta), que, entrando na adolescência, sonha em ser um artista famoso – com ênfase no “famoso” em vez de em “artista”. Claro que seus pais (Strong e Hathaway) desaprovam os planos do filho, ressaltando que este deve primeiro pensar em uma profissão que possa lhe trazer alguma segurança financeira; por outro lado, o avô do menino (Hopkins) demonstra apoio bem maior ainda que, em instantes de maior indefinição, acabe ficando ao lado dos adultos ao insistir, por exemplo, que o neto vá estudar em uma escola particular povoada por esnobes conservadores. O círculo principal em torno do protagonista inclui ainda seu melhor amigo Johnny (Webb), um garoto negro que vive com a avó doente e que é vítima constante do racismo do professor.

Ambientado no início dos anos 80, quando a eleição de Reagan ainda era apenas uma ameaça neoliberalista, Armageddon Time é protagonizado pelo tipo de liberal de classe média norte-americano que – para lembrar Corra! – manifestaria com orgulho sua vontade de poder votar em Obama pela terceira vez, mas que na prática prefere ver as desigualdades sociais como um problema dos outros e que apoia qualquer manifestação antirracismo desde que isto não exija, digamos, sair de casa para ir a uma demonstração diante da polícia. Aliás, não é acaso que Gray inclua passagens no filme que enfocam o irmão e a sobrinha de Trump (esta última vivida por Jessica Chastain em uma participação especial), já que é o tipo de paralelo feito sob medida para provocar um sorriso de reconhecimento por parte da plateia, que pode então bater nos próprios ombros ao observar “como nada muda”.

Não ajuda muito, claro, que o jovem protagonista beire o insuportável, se apresentando como um pré-adolescente arrogante, mimado e cujo desrespeito recorrente pela mãe é tratado pelo filme como uma mera demonstração de divertida rebeldia (e há um jantar, logo no primeiro ato da projeção, cujo caos o cineasta encara como hilário quando na realidade é apenas irritante). Sim, não há como não se encantar pelo vovô Anthony Hopkins, adorável em uma composição calorosa e cheia de afeto, mas é também difícil não reconhecer qual é sua função e seu destino na trama e que não poderia ser mais esquemático, clichê e manipulativo. Enquanto isso, Anne Hathaway pode ser uma atriz talentosa e carismática (e é), mas é quase impossível enxergá-la como a cansada mãe de família que busca equilibrar as tarefas domésticas e a ambição de concorrer em uma eleição a um posto administrativo no sistema escolar de seu distrito. Para completar, o longa ainda busca apresentar Jeremy Strong como um pai violento, daqueles que surram os filhos de modo bárbaro, apenas para tentar redimi-lo como um homem que se vê pressionado pelas obrigações de sustentar uma família e que no fundo é uma figura paterna louvável (não, não é).

Mas o que mais espanta em Armageddon Time é que gaste quase duas horas para estabelecer – repetidas vezes – que vivemos numa sociedade desigual e cujo racismo estrutural frequentemente pune pessoas negras de modo rigoroso por ações que, cometidas por um branco, levariam a um tapinha na mão. Assim, testemunhamos de forma recorrente Johnny sofrendo consequências por atitudes cometidas por Paul ou ao lado deste, sendo quase possível ver James Gray balançando a cabeça atrás da câmera enquanto murmura para si mesmo como seu filme faz “denúncias” importantes. Ironicamente, o que a obra obviamente ignora é o próprio (e claro) racismo, já que o único personagem negro de destaque é também aquele que apresenta o protagonista às drogas, o convence a fugir de uma excursão para passear por Nova York e que – claro – conhece um receptador para itens roubados.

Igualmente irônico é notar como Gray inclui a já mencionada cena em que Mary Trump faz um discurso para um bando de estudantes abastados durante o qual expressa seu orgulho por não precisar de “ajuda” para ter sucesso na profissão, alcançando seu status “apenas” graças ao trabalho árduo – algo que o diretor claramente (e corretamente) vê como afirmações absurdas ao mesmo tempo em que seu próprio filme se estabelece, na superficialidade autocongratulatória de suas “denúncias”, como um exemplar perfeito de como basta que um cineasta branco construa uma narrativa minimamente crítica para que receba fartos elogios por seu bravo esforço. O que Gray – e, ao que parece, muitos outros – não percebe é que Armageddon Time é um gesto tão vazio quanto o que Paul faz ao sair no meio de um discurso de Fred Trump, enxergando como corajoso algo que é apenas muito cômodo.

Para um projeto que tanto se orgulho de “denunciar” o privilégio branco, Armageddon Time soa pouco mais do que como um trabalho feito por um adolescente para a disciplina de estudos sociais de sua escola particular que cobra mensalidade de três mil reais e se acha bastante progressista por oferecer uma bolsa de estudos a um aluno pertencente a uma minoria – aluno este que, então, poderão usar para se sentir bem consigo mesmos ao elogiá-lo por seus “esforços” quando, de fato, sentem apenas admiração pela própria atitude de dar uma oportunidade a alguém oprimido historicamente por seus antepassados.

O filme é, em suma, uma fraude. E convincente, pelo que infelizmente vi em Cannes.

Texto originalmente publicado durante a cobertura do Festival de Cannes 2022.

20 de Maio de 2022

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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