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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
16/02/2023 22/09/2022 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Diamond/Galeria
Duração do filme
147 minuto(s)

Triângulo da Tristeza
Triangle of Sadness

Dirigido e roteirizado por Ruben Östlund. Com: Harris Dickinson, Charlbi Dean, Dolly De Leon, Vicki Berlin, Zlato Burić, Sunnyi Melles, Iris Berben, Amanda Walker, Oliver Ford Davies, Henrik Dorsin, Arvin Kananian, Alicia Eriksson, Jean-Christophe Folly e Woody Harrelson.

Os três últimos filmes do sueco Ruben Östlund têm algo importante em comum: ambientados totalmente (ou em sua maior parte) em espaços bastante específicos e limitados (os alpes franceses, um museu de Estocolmo, um iate de luxo/uma ilha), Força Maior, The Square: A Arte da Discórdia e Triângulo da Tristeza empregam estes espaços para delimitar microcosmos sociais e analisar o comportamento, as expectativas e as posições de seus personagens nestes contextos. Não que o objetivo do cineasta seja criar algum tratado sociológico, já que, extrapolações à parte, seus interesses principais residem no ridículo da natureza humana, no sentimento de autoimportância que muitas de suas criações exibem e na sátira.


Adotando o estilo de uma metralhadora giratória, o roteiro escrito pelo próprio Östlund inicia seu massacre pelo mundo da moda, apresentando-nos ao modelo Carl (Dickinson), que, onipresente em capas de revistas apenas dois anos antes, agora experimenta os efeitos de uma indústria que cospe “ícones” com a mesma facilidade com que os cria, vendo-se forçado a se submeter a audições para marcas que há pouco o considerariam caro demais para suas campanhas (um lembrete de que ícones instantâneos são menos “ícones” do que produtos com tempo de validade reduzido). O mais interessante desta introdução, contudo, é a maneira irreverente com que o diretor aponta o contraste entre o marketing de marcas populares e aquelas mais caras: enquanto as primeiras habitualmente trazem modelos sorridentes, as últimas praticamente esperam que seus manequins expressem em sua postura um quase desprezo por seus consumidores, numa sugestão de que parte do impulso da compra reside talvez num desejo inconsciente de conquistar o respeito dos oráculos da moda (leia-se: dos que ditam as regras da alta sociedade).

Numa sociedade na qual a imagem é mais importante do que a realidade e este “respeito” está diretamente associado ao glamour exibido nas redes sociais (no universo digital, a máxima de O Homem que Matou o Facínora seria “para que a lenda se torne fato, instagrame a lenda”), Carl é também um mero personagem secundário na existência virtual da namorada, a influencer Yaya (Dean), que ostenta viagens que não tem condições de fazer, pratos que não pode degustar e roupas pelas quais não pode pagar enquanto convence seus seguidores de que leva uma vida que, como certamente sabe, deixará de existir até mesmo como fantasia caso suas fotos deixem de gerar o engajamento necessário – e neste sentido é irônico constatar como ela se esforça para “produzir conteúdo” (suspiro) continuamente para manter um cotidiano que não é o seu, como se tivesse passado a acreditar na ficção apresentada em seu próprio perfil no Instagram.

Mestre em criar desconforto no espectador ao expor a hipocrisia dos personagens que acompanha, Östlund também emprega o jovem casal em uma longa sequência na qual, sob o pretexto de desafiar convenções de gênero, Carl expõe sua frustração com o teatro criado por Yaya sempre que chega o momento de pagar a conta ao fim de uma refeição, sendo patente como seus protestos de que a discussão “não é sobre dinheiro” nada mais é do que sobre dinheiro e que sua defesa da “igualdade” não ocorreria caso seu cartão de crédito não estivesse sobrecarregado. É notável, diga-se de passagem, como o realizador acentua a patetice e o incômodo da situação através de recursos como o som do limpador de para-brisas durante o trajeto até o hotel e de como, logo depois, a tentativa de Carl de apresentar seus argumentos de forma convincente é sabotada pelas portas do elevador que insistem em interromper seu discurso.

Porém, por mais eficiente que seja este primeiro ato de O Triângulo da Tristeza, a base temática do filme é de fato estabelecida no segundo, que ocorre durante o luxuoso (em um contexto de decadência ocidental) cruzeiro no qual somos apresentados a vários outros personagens – ou melhor: tipos – que serão utilizados para debater as obsessões do cineasta: o oligarca russo Dimitry (Burić), o desenvolvedor de apps Jarmo (Dorsin), a faxineira Abigail (De Leon) e a chefe desta, Paula (Berlin) – além do capitão Thomas (Harrelson) e dos já mencionados Carl e Yaya. Explorando o absurdo intrínseco ao simples conceito deste tipo de produto turístico (centenas de pessoas pagando pequenas fortunas pela hospedagem em um hotel flutuante), Östlund encontra a metáfora visual perfeita para esta sociedade insustentável em seus excessos e desigualdades ao enfocar os passageiros sempre inclinados graças à instabilidade do navio, completando a imagem com os ângulos holandeses que reforçam o desequilíbrio (ou seja: quando as pessoas não surgem em posição oblíqua, é o próprio mundo que está fora de prumo).

O que nos traz a uma sequência que, perdoem-me o clichê que creio nunca ter utilizado em quase três décadas de carreira, é uma verdadeira tour de force: o longo jantar perturbado pelo mar revolto e suas consequências sobre a saúde dos turistas. Construída com paciência e disciplina pelo diretor, que inicialmente utiliza o desenho de som para sugerir o caos que se instala pelo salão, a passagem culmina em um vômito coletivo que faz jus à competição de devoramento de tortas de Conta Comigo, mas com um propósito maior do que a mera escatologia: a princípio, ao retratar como os demais passageiros se esforçam ao máximo para ignorar o que está acontecendo ao redor, há a sensação óbvia de estarmos vendo pessoas que há muito se convenceram de que nada pode atingi-las – e à medida que o enjoo chega para todos, o filme não tenta ser sutil (e nem deveria, pois a abordagem funciona bem para a sátira) ao ilustrar como, mesmo no meio do desastre, há o condicionamento (ou melhor: imposição) sócio-econômico dos papeis pré-determinados em que os proletários são forçados a se prostar e a limpar a sujeira da elite mesmo que esta seja exposta por Östlund em toda sua fragilidade (sim, estes indivíduos podem estar na lista de bilionários da Forbes, mas isto não os ajuda quando estão reduzidos a espasmos de vômito e diarreia em suas cabines suntuosas).

Mas se Triângulo da Tristeza já mereceria todos os créditos pela insanidade desta sequência (que, vale lembrar, inclui ainda uma troca de citações entre – como se definem – “um russo capitalista e um americano socialista”), o terço final do longa completa a discussão de maneira inspirada ao atirar alguns de seus personagens em uma situação que os despe do que possuem e os resume ao que são. Qual o valor de uma influencer de estilo de vida ou de um modelo num cenário em que todos precisam contribuir para o bem geral? Não por acaso, é aqui que a faxineira Abigail (De Leon deveria ter sido indicada a todos os prêmios possíveis) subitamente se vê no topo da pirâmide depois de uma existência de oportunidades negadas e de limitações profundas que expõem a ideia de “meritocracia” como a canalhice autocongratulatória que aqueles que já nasceram com os caminhos abertos adoram berrar.

Pois é muito fácil endeusar Reagan, Thatcher e o neoliberalismo quando são os outros que sustentam a utopia em que você vive: programa social é “esmola para preguiçosos”, enquanto subsídios e isenção de impostos “fazem a economia girar”. Bastaria que a situação se invertesse levemente, porém, para que os mesmos que citam Milton Friedman adotassem Marx como guru e defendessem que “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Enquanto isto não ocorre, para esta elite a necessidade do outro será apenas um privilégio exigido por quem cometeu o equívoco de ter uma família humilde.

07 de Fevereiro de 2023

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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