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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
29/02/2024 01/03/2024 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Warner
Duração do filme
166 minuto(s)

Duna: Parte 2
Dune: Part Two

Dirigido por Denis Villeneuve. Roteiro de Denis Villeneuve e Jon Spaihts. Com: Timothée Chalamet, Zendaya, Rebecca Ferguson, Javier Bardem, Josh Brolin, Austin Butler, Dave Bautista, Florence Pugh, Léa Seydoux, Babs Olusanmokun, Souheila Yacoub, Roger Yuan, Giusi Merli, Alison Halstead, Anya Taylor-Joy, Stellan Skarsgård, Charlotte Rampling e Christopher Walken.

(Este texto contém spoilers; discutir o filme sem tocar em seus elementos temáticos seria tolice.)


“Você quer controlar um povo? Diga a ele que um messias virá e eles esperarão”, diz Chani em certo momento de Duna: Parte 2. Ciente de que o próprio amado é uma figura messiânica em potencial que adia a própria ascensão por temer o resultado que esta traria, a jovem não permite que seus sentimentos obscureçam a consciência de que as “profecias” sobre um “salvador” fazem parte de uma estratégia de dominação colocada em prática pela mãe do protagonista, Lady Jessica (Ferguson), e que mesmo as possíveis consequências positivas da liderança de Paul Atreides (Chalamet) empalideceriam diante do fato de que um estrangeiro assumiu este papel em vez de algum nativo.

Sem a obrigação de ter que apresentar o universo criado por Frank Herbert em seu livro original, já que este trabalho já havia sido feito na ótima Parte 1, o cineasta Denis Villeneuve e seu co-roteirista Jon Spaihts podem concentrar esta continuação no desenvolvimento da dinâmica entre os personagens e seus interesses, abordando as intrigas políticas palacianas, os diversos planos concebidos por cada Casa (Atreides, Harkonnen, Corrino) e pelo culto Bene Gesserit, os conflitos internos destes grupos e, ainda mais importante, a instrumentalização das crenças religiosas em prol de uma causa. Demonstrando como a Fé é uma motivadora poderosa, Duna sabe que é muito mais fácil mover um povo convencendo-o de que é o “escolhido” e que, portanto, uma disputa geográfica não é uma simples luta por terra, mas por algo infinitamente maior.

Esta é uma percepção que a Princesa Irulan (Pugh), filha do Imperador (Walken), detém com clareza e que a move a aconselhar o pai a lidar com os conflitos no planeta Arrakis com cautela em vez de com força bruta, já que só há uma coisa mais perigosa que um líder religioso: um mártir. Pupila da Reverenda Madre Mohiam (Rampling), Irulan aos poucos se dá conta da dimensão da manipulação da líder das Bene Gesserit, cujos desígnios encontram como obstáculo os interesses particulares de uma de suas representantes, Lady Jessica, que se mostra determinada a convencer os Fremen (habitantes nativos de Arrakis) de que Paul – ou Muad´Dib ou Mahdi ou Usul ou Lisan al Gaib ou Kwisatz Haderach – é o Messias, um projeto que inicia de modo calculista ao focar a princípio naqueles que demonstram medo ou uma personalidade fragilizada.

O curioso é como o mais resistente a esta ideia é o próprio Paul, que insiste em negar este papel – o que, evidentemente, os crentes enxergam como sendo uma demonstração de humildade que serviria como mais uma prova de que ele é um enviado divino. Neste sentido, por sinal, a performance de Javier Bardem é fundamental para que percebamos este processo, já que a natureza calorosa e forte do sujeito aos poucos é substituída por uma postura de adoração que o transforma em um seguidor passivo e fanático disposto a morrer pelo “Lisan al Gaib” – e é assustador constatar como alguém antes tão disposto a questionar figuras de poder pode se tornar tão subserviente e acrítico. Em contrapartida, a Chani vivida por Zendaya compreende plenamente este risco, não hesitando em virar-lhe as costas ao vê-lo abraçar um papel tão maniqueísta. Já Timothée Chalamet, apesar das críticas de alguns à sua aparente inexpressividade, comprova como o tom monocórdio de sua voz e o olhar vazio funcionam como contraponto eficaz ao volume elevado e à modulação raivosa com que se expressa após beber a Água da Vida e aceitar a condição de Messias (por falar nisso, aproveito para mencionar a imitação impecável que Austin Butler faz de Stellan Skarsgård em sua composição vocal, o que se revela uma escolha divertida e eficiente).

Contando com uma direção de arte assinada por Patrice Vermette que faz jus à complexidade daquele universo, Duna: Parte 2 é hábil ao estabelecer visuais radicalmente diferentes para cada planeta e até ao retratar regiões diferentes de um mesmo mundo: se o norte de Arrakis é repleto de ambientes que surgem como imensas cavernas adaptadas aos propósitos dos Fremen, por exemplo, o sul é apresentado como uma região com edificações, remetendo a cidades projetadas mais tradicionalmente (ainda que sem abandonar a estética rochosa) – e o templo colossal no qual Paul se dirige aos fiéis no final do segundo ato é marcante ao trazer aberturas que permitem que diversos fachos de luz se projetem sobre sua arena central como uma confirmação divina do que vemos ali. Enquanto isso, o planeta dos Harkonnen aparece como uma imagem em negativo em seus ambientes externos, como se o sol que o ilumina sugasse todas as cores, convertendo todos em estátuas de mármore, sendo especialmente fascinante notar como os fogos de artifício se tornam explosões de tinta preta contra o céu branco. (E mesmo que espaços escuros e opressivos não sejam exatamente originais como lar de vilões, não há como negar sua eficácia narrativa.) Para completar, os equipamentos construídos e utilizados pelos personagens soam orgânicos às suas culturas (como as naves que remetem a insetos) e adequadamente envelhecidos pelo uso, sendo também interessante observar, por exemplo, como o conceito de um papiro como mídia para envio de mensagens é adaptado para se apresentar como um tubo de metal com as palavras gravadas em sua superfície, mantendo uma natureza que remete a algo medieval e futurista ao mesmo tempo.

Já a fotografia de Greig Fraser reforça a beleza e o caráter mutável de Arrakis ao oscilar entre tons agradavelmente quentes, alaranjados, e passagens nas quais a superexposição da imagem sugere um calor sufocante e hostil. Aliás, um dos maiores méritos da Parte 2 é permitir que a narrativa invista tempo em sequências mais contemplativas que exploram a beleza do planeta e nas quais os personagens se dão ao luxo de esquecer por alguns minutos de todas as dificuldades que experimentam, entregando-se apenas ao prazer da companhia uns dos outros – algo que é refletido também no desenho de som, que em diversos momentos descarta qualquer ruído além do vento e do ruído da areia se deslocando, o que confere um naturalismo sólido ao que vemos (neste sentido, a cena em que vemos vários guerreiros Harkonnen levitando próximos à superfície vertical de uma montanha de pedra é também memorável). E se as sequências de ação contam com uma mise-en-scène bem estabelecida que permite que o espectador compreenda sem problemas a lógica do que ocorre na tela (a estratégia adotada na batalha final, por exemplo, jamais gera confusão), o destaque é sem dúvida aquela que retrata a primeira vez em que o protagonista monta sozinho em um gigantesco verme da areia, quando Villeneuve revela a dimensão da criatura ao longe e mais tarde, sem sacrificar a noção de escala, acompanha Paul enquanto corre, desliza pela areia, prende seus arpões no animal e finalmente sai da nuvem de poeira, surgindo imponente de pé sobre este e guiando seus movimentos. (Dito isso, em nenhum instante o longa explica como eles descem quando chegam ao seu destino.)

Um outro elemento importante da Parte 2 reside, como na anterior, na influência das culturas e signos árabes sobre a concepção de Arrakis e seus habitantes, o que inclui suas vestes, seus costumes (como o lamento feminino alto e em grupo diante de um cadáver), seu vocabulário (como a referência a djinns) e sua religião (como ao se prostarem em uma mesma direção, como se voltados a Meca). Do mesmo modo, não é à toa que Villeneuve, ao encenar um ataque dos Harkonnen aos Fremen, inclui vários planos que parecem a tela de controle de um drone, remetendo às imagens que já vimos inúmeras vezes de árabes (guerrilheiros ou civis) sendo massacrados por mísseis disparados pelo exército norte-americano ou, mais recentemente, israelense (poucos dias antes do lançamento do filme, por exemplo, registros quase idênticos mostraram civis palestinos sendo mortos enquanto tentavam receber alimentos em um ponto de distribuição). E se o fato de os Harkonnen se referirem frequentemente aos Fremen como “ratos” soa familiar, basta pesquisar a regularidade com que os palestinos são tratados de forma idêntica pela extrema-direita sionista ao redor do mundo, incluindo no Brasil (algo que os nazistas também faziam com relação aos judeus).

Aliás, é também importante reconhecer como Villeneuve não ignora o Orientalismo descrito por Edward Said em sua própria abordagem e como isto influencia a percepção do espectador sobre os personagens por mais que o filme tente evitar suas armadilhas: em certo instante, por exemplo, Paul diz que os Harkonnen foram ao deserto para caçá-lo – uma postura arrogante que o coloca como centro de todos os acontecimentos e relega os Fremen a meros seguidores, como se incapazes de autodeterminação (algo que Stilgar imediatamente aponta). Por outro lado, é impossível negar como o longa repete o velho equívoco ao realmente situar Paul como uma espécie de T.E. Lawrence “guiando” os árabes na revolta de 1916 mesmo que Chani critique esta situação diversas vezes.

Brilhante em seu esforço para ilustrar como o processo de conversão/catequização frequentemente tem início em tons benignos até encontrar espaço para uma radicalização que se retroalimenta, corrompendo o fiel e levando-o a crer que suas ações mais reprováveis têm um “propósito” maior (como disse o físico Steven Weinberg, “com ou sem religião, sempre haverá pessoas boas fazendo coisas boas e pessoas más fazendo coisas más. No entanto, para que uma pessoa boa faça uma coisa má, é preciso religião”), Duna: Parte 2 tem plena consciência de que não está contando a história de um jovem que se converte em herói, mas sim em ameaça – e a cena que traz Paul abraçando esta posição é concebida não como um momento inspirador, mas de horror, carregando nas sombras, na trilha com tons angustiantes e nos primeiros planos que expõem a reação apreensiva de alguns e de fanatismo de outros. (Aliás, neste aspecto é mais do que apropriado que a Princesa Irulan surja no clímax da narrativa vestindo uma malha de aço que remete à figura de Joana D´Arc, já que esta também era movida pela crença de ser um instrumento divino.)

Reagindo à recusa das demais Casas em aceitar sua posição de poder com a determinação imediata de que seus inimigos sejam “conduzidos ao Paraíso”, Paul/Lisan al Gaib inicia uma Guerra Santa que sua mãe vê como a concretização de seu destino, encarando a inevitável destruição de milhões de vidas como algo necessário para que alcancem um objetivo maior e “divino”. O que em nada difere da crença dos evangélicos de que o retorno de todos os judeus a Israel e a ocorrência de um amplo conflito na região é algo essencial para que Jesus retorne para o Juízo Final.

Ou melhor… difere, sim: as Bene Gesserit só existem na ficção.

06 de Março de 2024

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Assista também ao vídeo sobre o filme:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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