Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
06/03/2025 | 28/02/2025 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Warner | |||
Duração do filme | |||
137 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Bong Joon Ho. Com: Robert Pattinson, Steven Yeun, Naomi Ackie, Mark Ruffalo, Toni Collette, Anamaria Vartolomei, Patsy Ferran.
Com uma filmografia marcada pelas críticas severas e constantes à lógica capitalista, o sul-coreano Bong Joon Ho demonstra uma coerência notável em suas narrativas, que discutem de modo inventivo temas como desigualdade social e as estruturas de poder que perpetuam um sistema que obviamente fracassou há muito tempo. De Expresso do Amanhã a Parasita, passando por O Hospedeiro e Okja (no qual outra de suas preocupações – o abuso animal – é abordada), o cineasta emprega sua sensibilidade política como fonte criativa – algo mais uma vez evidente em seu novo trabalho, Mickey 17.
Adaptado do livro de Edward Ashton pelo próprio diretor, o roteiro acompanha Mickey Barnes (Pattinson), um sujeito que, para fugir do perigoso agiota ao qual deve dinheiro, se inscreve em uma missão espacial patrocinada por um bilionário fracassado na política, Kenneth Marshall (Ruffalo), e que visa colonizar um planeta distante. No entanto, ao não prestar a atenção devida ao formulário que preenchia, Mickey acaba se tornando voluntário para ser um expendable — “descartável” -, ou seja, passa a viver para morrer. Quando isto ocorre (e ocorre um número de vezes que não é difícil deduzir), uma nova versão é "impressa", tendo suas memórias e personalidade reimplantadas para que continue o trabalho. Trata-se de um conceito fascinante e repleto de possibilidades que – não é preciso ser um gênio para perceber - serve como metáfora para a exploração do proletariado pelas classes dominantes: para seus empregadores, Mickey é literalmente descartável, um trabalhador cuja vida vale menos que o custo de sua substituição, sendo muitas vezes mais fácil exterminá-lo do que tentar curá-lo dos problemas que possam comprometer sua saúde.
Seguindo este objetivo temático, o diretor também ilustra de outros modos como as classes economicamente menos favorecidas são vistas pelas “elites” como compostas por seres “inferiores” – e a nave que abriga a maior parte da ação é um exemplo perfeito da inteligência da direção de arte do filme: suja, remendada e cheia de improvisos (especialmente nas áreas ocupadas pelos trabalhadores), a nave só exibe ambientes limpos, luxuosos e confortáveis nos espaços reservados ao bilionário e sua esposa, vivida por Toni Collette (e cuja obsessão por molhos demonstra como sua realidade está a anos-luz daquela experimentada pelos esfomeados operários que mantêm tudo funcionando).
Encarnando Marshall com uma abordagem que abraça perigosa e acertadamente a caricatura, Mark Ruffalo concebe o sujeito como um amálgama de figuras como Donald Trump e Elon Musk: autoritário, egocêntrico e obcecado com a ideia de colonização e pureza racial, o bilionário basicamente grita suas intenções nazistas ao falar em estabelecer uma "raça pura" no novo planeta – e é notável como o ator consegue se equilibrar entre a composição divertida e as ações desprezíveis, criando um vilão que é tanto cômico quanto repugnante (e o mesmo pode ser dito acerca de Collette).
Mas, claro, é Robert Pattinson quem sustenta o filme sobre os ombros, adotando uma composição repleta de nuances e transmitindo a insegurança e a vulnerabilidade do personagem através de sua postura encolhida e da voz anasalada, trêmula e hesitante que se contrapõem à versão mais dominante (quase sociopática) e fria de Mickey 18, demonstrando uma habilidade imensa ao permitir que o espectador os separe sem que seja preciso que se identifiquem.
Não que Mickey 17 se limite a virtudes: o humor, marca registrada de Bong Joon Ho, aqui se mostra mais irregular, tropeçando em gags que nem sempre funcionam – embora conte também com momentos genuinamente engraçados, como ao apresentar a máquina que gera as novas versões de Mickey e que, como uma impressora comum, apresenta travamentos e retrocessos do papel/clone. Além disso, a narração em off, embora necessária por se tratar de uma adaptação que precisa transmitir a vida interior do personagem e suas reflexões, por vezes soa excessiva e mesmo preguiçosa, criando atalhos verbais para elementos que poderiam gerar passagens visuais interessantes.
Não há, porém, como negar as ambições temáticas do filme e de seu realizador: além da já discutida crítica ao capitalismo e à exploração do trabalhador, Mickey 17 também aborda questões como a colonização (com invasores tratando os nativos como agressores), a destruição ambiental e o abuso animal (neste sentido, o desenho de som merece destaque ao conceber as criaturas alienígenas, cujos ruídos incluem quase subliminarmente os latidos e ganidos de cachorros, inspirando assim uma simpatia imediata por elas).
Fazendo referências diretas a movimentos de extrema-direita (as roupas e bonés dos seguidores de Marshall remetem aos usados pela turma do MAGA), o filme faz uma relevante comparação entre grandes corporações, movimentos políticos e igrejas, mostrando como todos podem facilmente se tornar instrumentos de controle e opressão. E, claro, é também possível enxergar no longa uma discussão existencial sobre a natureza da identidade e da continuidade da vida, embora esta não pareça ser a principal preocupação de Bong Joon Ho.
O fato é que o filme tem me voltado à mente de forma contínua desde que o vi na Berlinale – e isto é sempre evidência de uma obra que deixou suas marcas no espectador.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Berlim 2025
15 de Fevereiro de 2025
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