Forçamos nosso caminho por rochas cinzentas, o verde de pequenas plantas crescendo em suas imperfeições; erguemo-nos no céu, viajando na liberdade vasta do azul; descemos e dançamos por entre as folhas de grama, empurrando-as contra a terra; passamos gentilmente pelo corpo delicad’o de uma flor e tiramos dela uma única pétala, que carregamos conosco em nossa viagem.
E, em outro lugar, gritamos ao passarmos entre construções cinzentas; lutamos para penetrar em frestas de janelas sujas. Máquinas correm por caminhos de concreto, misturando-se em um borrão de luz laranja-vermelho e rangidos e rugidos metálicos. Guindastes se erguem no ar, formando silhuetas afiadas no horizonte sem cor. Carregamos sujeira, lixo, fumaça.
Somos o vento; não há muito mais o que explicar.
FLOWER, criado pela Thatgamecompany e publicado pela Annapurna Interactive (também responsável pela publicação de Outer Wilds, The Unfinished Swan e What Remains of Edith Finch, sobre os quais há textos do Em Fases), é um experimento incrivelmente simples: controlamos nossa movimentação apenas com o mouse, viajando por paisagens naturais, passando por flores, soltando uma de suas pétalas e seguindo em frente, para a próxima flor e, dessa forma, provocando o crescimento de plantas e estimulando o desenvolvimento de vida pelo ambiente.
O jogo caracteriza o vento como um poder implacável da natureza, soando grave e violento, podendo mover rochas, desfigurar e destruir ambientes naturais e estruturas de ferro e concreto, mas tendo a capacidade de carinho e delicadeza, soando como um sopro brando e sutil, passando cuidadosamente por flores, fazendo-as balançar levemente, acariciando o gramado e fazendo-o tremular em ondas lentas. Ele nos coloca no lugar dessa entidade sem corpo de forma simples, mas eficiente: nós, o vento, sendo visíveis apenas pelas reações que causamos – na maior parte do tempo, o voar das pétalas – somos acompanhados pela câmera de forma desorganizada, inconsistente; às vezes ela viaja rapidamente, junto a nós; às vezes é deixada para trás, nos observando à distância; às vezes nos acompanha pela direita, às vezes pela esquerda, às vezes por cima, às vezes por baixo, de forma que demonstra a instabilidade do vento em suas viagens, reagindo a nós e aos nossos movimentos da mesma forma imprevisível que reagimos ao ambiente e a atmosfera que nos cerca.
Sopramos e acariciamos os troncos e galhos das árvores secas, frutos e folhas florescem e farfalham na madeira; contorcemos nosso trajeto, circulamos e ondulamos no ar, formando desenhos com o que levamos - a poeira e o pólen e as pétalas - ao passarmos por paisagens pitorescas e pacíficas; cantamos cantos calmos e caules carregados de cores se curvam no caminho; nutrimos e assistimos nascer na natureza o que plantamos.
E, em outro lugar, erguem-se de terrenos sem vida, tijolo por tijolo, paredes grisalhas. Água escorre por entre frestas e carrega restos e sujeira e respinga e recai em poças escuras. Folhas pálidas, pintadas de letras pretas, amassadas e esquecidas se acumulam em cantos. O ar é opaco, escuro, seco e denso.
O jogo é dividido em seis momentos diferentes, durante cada um dos quais viajamos por uma paisagem distinta, essas parecendo infinitas, estendendo-se até e se perdendo no horizonte (nossa locomoção sendo limitada apenas por correntes de vento que impedem a saída de determinado espaço), sendo constituídas detalhadamente e cuidadosamente com uma variedade grande de plantas de cores, formas e tamanhos diferentes, estruturas rochosas, planícies, colinas e cânions e longos espaços completamente cobertos de grama, com cada uma das individuais folhas do gramado se comportando individualmente, reagindo da própria forma e naturalmente à nossa passagem.
Entre cada um desses seis momentos e antes de tomarmos controle do vento, retornamos a uma mesma imagem: uma janela, sob a qual, em uma mesa, crescem pequenas plantas em potes, cada uma representando e servindo como forma de selecionar uma das seis paisagens do jogo (a quantidade de plantas presentes na mesa aumentando quanto mais jogamos). E, depois de selecionarmos a paisagem para onde iremos, assistimos a breves montagens que nos mostram o estado de estruturas artificiais criadas pelos humanos. Em imagens cinzentas e, diferentemente do resto do jogo, dos momentos na natureza, bidimensionais e quase imóveis, vemos ruas mal cuidadas, povoadas apenas por carros, cheias de prédios altos, sujos, sem personalidade ou cor; o som dos ambientes dominado por ruídos artificiais, elétricos, buzinas e sirenes; o vento soando feroz e o mundo, vazio.
Ao longo das seis paisagens, o ambiente se torna progressivamente mais afetado pela presença humana, inicialmente algo positivo, em harmonia com a vida desses ambientes naturais: aparecem turbinas para geração de energia eólica, nosso objetivo deixando de ser apenas estimular a vida e se tornando, também, fazer com que essas turbinas girem. Na paisagem seguinte, aparecem ocasionais cercas de madeira, pilhas de feno, e postes de luz que devemos acender, a presença de luz se tornando a principal mudança que causamos no ambiente, deixando de ser a proliferação das flores. E, no final da quarta paisagem, tornando-se uma presença constante a partir da quinta, aparecem postes, torres e fios condutores de energia elétrica; nossa primeira e única ameaça, aparecendo apenas depois de dois terços da narrativa.
A imagem dessas estruturas tem, desde o primeiro momento em que aparecem, claras e poderosas (mesmo que clichês) indicações de ameaça: as torres, compostas por vigas de ferro interconectadas de forma intricada, surgem do chão afiadas, suas silhuetas parecendo, em vários momentos, com as de teias de aranha. Elas produzem murmúrios eletrônicos desagradáveis, destoantes dos sons naturais do resto do jogo. Brilham na escuridão da noite, repletas de luzes vermelhas, e trazem consigo uma tempestade trovejante e violenta. Se encostarmos nelas e seus fios, as pétalas que carregamos se queimam e se desfazem em cinzas e fumaça.
E, então, passa a ser nosso objetivo destruir essas torres.
Através dessa progressão lenta de nossos objetivos e da invasão gradual da presença humana em nossas paisagens, FLOWER nos estimula a simpatizar e entender a resistência da natureza contra a humanidade. Ao assistirmos à calma destes ambientes naturais intocados, deixados em paz, ao vermos a harmonia (representada pela energia eólica) possível entre a natureza e a humanidade, só para depois termos nossa segurança e calma invadidas e destruídas pela presença obscura e ameaçadora do avanço tecnológico e do crescimento inconsciente de nossa sociedade, nós somos forçados a torcer pela destruição causada pela natureza contra o que nós, humanos, construímos, para que, através do que restar dessa destruição, possamos construir uma coexistência saudável.
E o jogo demonstra o poder do indivíduo para contribuir com essa luta pela coexistência através de seus “interlúdios”, através das imagens bidimensionais da janela e das cidades. A cada paisagem que jogamos, quanto mais vemos a realidade da invasão humana e o dano causado por ela no meio-ambiente, uma nova planta surge na mesa sob a janela, e a cada nova planta, a cidade que vemos através da janela e nas montagens se torna mais viva. Os céus, antes cinzentos, se tornam azuis; os prédios, antes sem cor, se tornam coloridos; a sujeira é levada embora; passamos a escutar insetos, uma brisa leve e risos e conversas e brincadeiras de crianças.
FLOWER, através da luta do vento para poder espalhar vida, nos mostra como podemos ajudá-lo.
Passamos por entre hastes de ferro e cabos murmurantes e de pouco em pouco, de viagem em viagem, sob o sol e sob a chuva, corroemos e envelhecemos o que não deve estar aqui.
E, em outro lugar, sob a escassa luz cinzenta que atravessa a grossa camada de nuvens escuras, em um pequeno pote, ergue-se da terra úmida um delicado caule e sua pequena folha verde.
24 de Agosto de 2021
Leia também as edições #01, #02, #03 e #04 da coluna.
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