Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
06/11/2014 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 1 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
77 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Eric Laurence.
Mário Duques é um homem de fala lenta e ar gentil. Sua sobrinha pequena, com cerca de dois anos de idade, imediatamente abre um sorriso imenso ao ver o tio que, com a cabeça calva, o rosto emaciado e o abdômen inchado, encontra-se claramente doente ainda que mantenha uma expressão feliz praticamente o tempo todo – mesmo ao falar com a enfermeira que o prepara para mais uma sessão de quimioterápicos. Pois Mário tem câncer. E acaba de iniciar um namoro em meio ao tratamento, embora se preocupe com o fato de que, durante o pouco tempo que teve com a namorada até agora, não se mostrou em sua fase mais viril. Até isto, porém, ele vê com humor e confessa aos amigos em um tom divertido. Mário parece um sujeito alegre. Um bom amigo, irmão e tio. Gosta de aventuras e fala com orgulho de seus mergulhos em Noronha. Mesmo adoentado, está planejando uma viagem ao Deserto de Atacama com o amigo Eric Laurence.
Mas Mário Duques está morto. Não viajou para o deserto, não teve o tempo que desejaria com a namorada e não viu o filme sobre sua luta contra a doença ser realizado.
Em um momento de Uma Passagem para Mário, vemos o personagem-título questionar seu oncologista sobre a possibilidade de ser liberado para a viagem com a qual tanto sonha; no outro, vemos Eric Laurece, diretor deste belo documentário, viajando solitariamente pela Bolívia e pelo Chile e entrevistando estranhos sobre o conceito de amizade e morte. Não demora até que percebamos que viagem e filme são mais do que uma viagem e um filme; são tentativas catárticas de cura do luto, de honrar a memória de Mário e de finalmente conduzi-lo ao deserto que queria visitar.
Abrindo com imagens do protagonista sob a água em Noronha, quando nada diante da câmera submersa com alegria óbvia, o longa usa o fato de nos identificarmos com o olhar da câmera (algo sobre o qual Christian Metz escreveu fartamente) para forçar o público a assumir a posição de Mário. Assim, quando vemos os planos capturados por este sob a água e nadamos em meio aos peixes enquanto o som do respirador toma conta das caixas ao nosso redor, ocupamos instantaneamente a posição do rapaz – e, mais tarde, quando a câmera traz Laurence em seu extenso passeio, é como se Mário – representado por ela, mas também por nosso olhar – estivesse viajando com o cineasta. Trata-se de uma estratégia narrativa psicologicamente rica e tematicamente comovente que emprega a própria natureza do Cinema como mecanismo ressuscitador, operando um pequeno milagre – mesmo que este, como todo milagre, seja simbólico e dependente de nossa interpretação subjetiva.
Mas a estrutura de Uma Passagem para Mário vai além: ao intercalar a jornada do diretor com cenas registradas pelo próprio Mário, somos constantemente lembrados do motivo por trás da viagem e sentimos a presença constante daquele homem – algo que reflete a obsessão do próprio Laurence com o amigo, já que frequentemente surge revendo aquelas imagens em quartos de hotel ou no ônibus que o transporta pela Bolívia. Da mesma forma, quando mais tarde vemos Mário posicionando uma câmera no capô de um carro e testemunhamos o cineasta fazendo o mesmo já no Chile, percebemos estar acompanhando não só um documentário, mas uma espécie de making of deste – algo ressaltado pelo instante no qual vislumbramos o primeiro roteiro escrito por Laurence no qual Mário ainda era um personagem presente na peregrinação rumo ao deserto e durante a qual, planejava/sonhava o roteirista-amigo, chegaria a discutir seu câncer e a avaliar a própria reação diante da doença.
Em vez disso, no entanto, outros tiveram que fazer esta reflexão por Mário. Assim, aqui e ali acompanhamos estranhos que Eric Laurence encontra no caminho e que discutem suas visões sobre amizade e a finitude da vida. Alguns comovem - como os três rapazes que chegam a se emocionar ao discutir o que sentem uns pelos outros; outros apenas recitam baboseiras metafísicas – como o boliviano que, filmado à noite e sob a luz bruxuleante de uma fogueira, é fotografado como um daqueles sábios do Cinema, mas apenas papagueia lugares-comuns que podem até servir para consolar alguém em luto, mas não trazem muito peso como filosofia ou mesmo psicologia.
E assim caminha o filme até que vemos um último vídeo que é identificado por uma legenda simples e triste como sendo “o último registro feito por Mário” – e é a partir daí que o próprio Eric Laurence volta a câmera para si mesmo e se posiciona na tela enquanto caminha pelo deserto, forma uma pilha de pedras ou suspira cansado sob o sol. No entanto, ao contrário de tantos documentaristas egocêntricos que parecem buscar qualquer desculpa para se colocarem como astros dos filmes que supostamente fazem sobre outras pessoas (vide o recente Em Busca de Iara), Laurence não parece à vontade como personagem e não sugere qualquer vaidade em suas ações. Logo percebemos o motivo: ele está se colocando apenas como avatar de Mário – o que fica claro em um belo plano no qual, ao caminhar no Salar de Uyuni, projeta um reflexo sobre a superfície molhada do sal, duplicando-se diante da câmera.
Doloroso como o devastador documentário canadense 65_RedRoses, Uma Passagem para Mário é um tributo tocante a um homem que devia ser muito especial para inspirar uma lealdade tão grande por parte de seus amigos – e que, não à toa, acaba sendo amado pelo espectador no desfecho da projeção, cuja sequência final certamente representa uma das coisas mais lindas que o Cinema produzirá em 2014 ao trazer, embaladas pela magnífica trilha de Plínio Profeta, imagens de Mário projetadas nas rochas do Atacama, transformando em telas as estruturas irregulares do deserto e representando perfeitamente o potencial curativo da Sétima Arte no processo de luto do diretor e na realização do sonho de seu personagem.
É uma sequência única, especial e poética. E que, enquanto dura na tela, traz Mário Duques magicamente de volta à vida.
03 de Maio de 2014