Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
18/01/2013 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Sony Pictures | |||
Duração do filme | |||
165 minuto(s) |
Dirigido por Quentin Tarantino. Com: Jamie Foxx, Christolph Waltz, Leonardo DiCaprio, Kerry Washington, James Remar, Don Johnson, James Russo, Bruce Dern, M.C. Gainey, Jonah Hill, Zoe Bell, Robert Carradine, Tom Savini, Michael Parks, Franco Nero e Samuel L. Jackson.
Nos filmes de Quentin Tarantino, a violência choca, mas também diverte e traz certo conforto. Interessado no tema “vingança” desde o ótimo roteiro de Amor à Queima Roupa e que se tornou centro de seus últimos seis filmes (Jackie Brown, Kill Bill Vol. 1 e Vol 2, À Prova de Morte, Bastardos Inglórios e este Django Livre), o cineasta se mostra perfeitamente à vontade ao criar situações que se resolvem essencialmente através da explosão de sangue e tecidos enquanto a narrativa se dedica a uma série de referências a filmes queridos pelo realizador. Pois Tarantino, independentemente do tema e do gênero no qual trabalhe, faz Cinema sobre Cinema – e seu imenso domínio técnico, de linguagem e narrativo o mantém como um diretor sempre fascinante mesmo que seus trabalhos sejam desprovidos de qualquer emoção genuína. Aliás, como discutirei mais abaixo, Tarantino não hesita em sacrificar a emoção em prol dos efeitos, mas considerando os efeitos que provoca, reclamar disso seria tolice. Pior: seria protestar por Tarantino estar sendo... Tarantino.
Homenageando desta vez o western spaghetti (aqui transformado em southern spaghetti, já que se passa no sul escravagista dos Estados Unidos no período pré-Guerra Civil), o diretor/roteirista conta a história de Django Freeman (Foxx), que é comprado pelo caçador de recompensas alemão Dr. King Schultz (Waltz) a fim de ajudá-lo a identificar três criminosos foragidos. Em troca, o sujeito promete não só libertar Django, mas também ajudá-lo a encontrar e resgatar sua esposa Broomhilda von Shaft (Washington), que vive na imensa fazenda do cruel Calvin Candie (DiCaprio). A partir daí, Tarantino combina o western a outro de seus subgêneros favoritos, o blaxploitation, fazendo referências às filmografias de Sergio Leone e Sergio Corbucci (incluindo uma ponta divertida de Franco Nero, o Django “original”) e oscilando entre brincadeiras sutis (como a fala final de Samuel L. Jackson, que remete à de Três Homens em Conflito) e outras mais óbvias (como os próprios nomes dos heróis, Freeman e Dr. King). Além disso, apenas uma mente carregada de cultura (pop ou não) como a de Tarantino poderia combinar o nome da valquíria Brunilda e o sobrenome do detetive Shaft, transformando a amada do protagonista em uma combinação da trágica donzela de Wagner e do ícone máximo do blaxploitation.
Repleto de elementos que despertam sentimento de familiaridade nos admiradores da obra do diretor, Django Livre não só traz nomes recorrentes em sua filmografia em papéis maiores ou menores (Bell, Jackson, Waltz, Parks) como ainda abusa de recursos narrativos clássicos em seus filmes, como a quebra de linearidade, travellings que acompanham conversas ao redor de uma mesa, explosões súbitas de violência, intervenções narrativas abruptas (como o letreiro que revela parte da trajetória da dupla principal) e fartos diálogos que contornam o assunto principal da discussão até alcançá-lo de forma frequentemente inesperada. No entanto, aqui Tarantino também oferece algo de novo, revelando uma inédita preocupação social e política através da raiva patente com que retrata o preconceito racial e o feio passado de seu país neste aspecto – e se a “culpa branca” é verbalmente manifestada pelo Dr. King (“Sinto-me culpado.”), a própria história de racismo dos Estados Unidos é apontada quando Django, explicando sua tolerância maior a um ato de crueldade, diz: “Estou um pouco mais habituado à América do que (o Dr. King)” – talvez a fala mais política já escrita pelo cineasta.
Reverente aos gêneros que homenageia, mas também inteligente o bastante para subvertê-los de forma instigante, Tarantino adota assinaturas típicas como os zooms rápidos e os letreiros estilizados, empregando também passagens musicais que, mesmo anacrônicas, complementam bem não só a história, mas também outros temas mais apropriados à época na qual a trama se passa (incluindo-se, aí, várias composições do mestre Ennio Morricone resgatadas de outras obras). Da mesma forma, o diretor pontua a projeção com seu senso de humor característico, criando uma das cenas mais engraçadas de sua carreira ao ironizar um grupo de racistas que, precedendo a fundação da Klu Klux Klan, lutam com seus capuzes brancos. Já em outros momentos, Tarantino usa o humor de forma intencional para anular o impacto que incidentes mais fortes poderiam provocar, demonstrando uma certa resistência a despertar emoções no espectador que representa, diga-se de passagem, uma de suas características mais curiosas como realizador: assim, se em certo instante a morte de um escravo poderia chocar, o cineasta imediatamente a segue com um zoom estilizado que desvia a atenção do público do acontecimento para a linguagem do diretor – e, mais tarde, quando Broomhilda reencontra Django, a potencial intensidade dramática da cena é substituída pelo humor do que ocorre em seguida e pelo comentário do Dr. King.
Pois o fato é que Tarantino é um criador menos interessado em lágrimas e mais em estabelecer personagens icônicos e fortes – algo que faz com maestria em Django Livre. Inicialmente surgindo como um indivíduo fragilizado e amedrontado, o herói encarnado por Jamie Foxx gradualmente ganha força e segurança, assumindo o controle sobre a própria vida, ao passo que o Dr. King de Christoph Waltz emprega a ironia e o distanciamento promovido por sua farta cultura (refletida em seu vocabulário elegante) como escudo diante da brutalidade e da estupidez dos escravagistas norte-americanos – e a dinâmica estabelecida entre os dois atores é fundamental para que o filme funcione tão bem. Enquanto isso, Leonardo DiCaprio incorpora a vilania de Calvin Candie sem qualquer hesitação – e sua expressão, ao estender a mão para o Dr. King em certo instante, revela uma intensidade demoníaca. Para finalizar, Samuel L. Jackson, como o escravo Stephen, se transforma gradualmente na figura mais ameaçadora e desprezível da trama – e é fascinante notar como sua relação com Calvin altera-se quando se encontram sozinhos. Neste sentido, aliás, é necessário aplaudir novamente a construção narrativa de Tarantino, que cria um reflexo perfeito entre as dinâmicas que regem as relações entre os brancos Dr. King e Calvin e seus escravos Django e Stephen.
Trazendo alguns dos melhores momentos da filmografia de Tarantino (como a transição entre um tema musical em assobio típico do western e uma batida hip hop que representa com inteligência a força crescente do negro na cultura norte-americana), Django Livre ainda culmina em um clímax longo e violento que certamente levará os fãs do diretor a orgasmos de sangue – e é admirável notar como, neste ponto da narrativa, o cineasta deixa claro que, para seu personagem-título, a violência não poupa inocentes, o que torna o filme ainda mais complexo ao demonstrar que, ali, há os Bons e os Maus, claro, mas que todos são igualmente Feios em sua amoralidade.
Tão fantasioso, ao seu próprio modo, quanto o Lincoln hagiográfico de Steven Spielberg, que traz o ex-presidente como o grande – quase único! – responsável por colocar um fim à escravidão nos Estados Unidos, Django Livre se apresenta, entre os dois, como o mais respeitoso com relação à cultura, à luta e ao papel dos negros no processo de sua própria libertação, já que aqui, ao menos, eles são mais do que figuras completamente passivas à espera de um branco heroico que possa salvá-los da própria apatia. E, neste sentido, é magnífico que o único branco com algum sinal de consciência racial traga o nome daquele que se atreveu a dizer uma frase simples, mas tão poderosa: “Eu tenho um sonho”.
Observação: há uma cena adicional após os créditos finais.
21 de Janeiro de 2013