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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
07/09/2017 01/01/1970 2 / 5 1 / 5
Distribuidora
Downtown/Paris
Duração do filme
107 minuto(s)

Polícia Federal - A Lei é para Todos
Polícia Federal - A Lei é para Todos

Dirigido por Marcelo Antunez. Roteiro de Thomas Stavros e Gustavo Lipsztein. Com: Antonio Calloni, Marcelo Serrado, Ary Fontoura, Flávia Alessandra, Bruce Gomlevsky, João Baldasserini, Rainer Cadete, Roberto Berindelli, Roney Facchini, Leonardo Medeiros e Sandra Corveloni.

A Arte é política por excelência – e o Cinema demonstrou, desde cedo, uma aptidão particular para propagar ideias, ideologias e também para combatê-las. Não há nada de essencialmente errado em um filme que se propõe a fazer propaganda; de um modo ou de outro, toda obra reflete as crenças de seus realizadores e isto faz parte da criação artística. O problema é quando esta propaganda tenta se vender como uma abordagem isenta e objetiva, empregando uma suposta imparcialidade como forma de legitimar suas afirmações – e, neste sentido, Polícia Federal – A Lei é para Todos é como um jogador de futebol que atinge repetidas vezes o calcanhar do oponente enquanto ergue os braços para indicar sua inocência. Assim, ao mesmo tempo em que traz vários personagens afirmando a própria isenção ideológica, a produção toma decisões questionáveis em sua essência, como ao escalar Ary Fontoura para interpretar um homem que já atacou várias vezes em entrevistas. Ora, se você contrata Caim para viver Abel, ele provavelmente vai retratá-lo com sendo responsável pela própria morte.


Neste sentido, quem me acompanha há algum tempo certamente intui minha posição acerca daquelas defendidas pelo filme, devendo levá-la em consideração quando abordo seus aspectos temáticos (não, não pretendo simular uma imparcialidade ideológica que sou incapaz de manter neste caso). Por outro lado, é perfeitamente possível discutir Polícia Federal a partir de dois ângulos, analisando não só sua postura política, mas também seus aspectos técnicos e narrativos – e quanto a estes últimos, o longa se mostra um policial por vezes eficiente, ainda que cometa um número considerável de tropeços que beiram o amadorismo.

A tarefa dos roteiristas Thomas Stavros e Gustavo Lipsztein não era fácil, claro, já que a Operação Lava-Jato acumula quase 50 fases e foi da apreensão de um caminhão de palmito a doleiros, chegando a cartéis envolvendo as maiores empreiteiras do país e esquemas de corrupção na Petrobrás que vinham desde o final da década de 90. O didatismo alcançado por Stavros e Lipsztein ao explicar estes links investigativos é notável, diga-se de passagem, embora sintomaticamente comece a deixar amplas lacunas a partir do momento em que estas passam a ajudar as teses defendidas pela obra – algo que discutirei mais adiante. Infelizmente, esta eficiência nas explicações não encontra eco nos esforços para criar sequências de ação, que na maior parte das vezes soam artificiais e malconduzidas. Tomemos como exemplo o que ocorre logo no primeiro ato da projeção, quando os agentes da PF vão ao hotel no qual se encontra Alberto Youssef (Berindelli): depois que vários carros param na porta do edifício durante a madrugada, um dos policiais desce e gritaTira a viatura daqui pra não dar bandeira!”, ignorando que se a movimentação dos veículos já não havia alertado o suspeito, seu berro poderia facilmente fazê-lo. Da mesma forma, pouco depois vemos uma das perseguições mais absurdas de 2017 quando o doleiro e o agente se veem nos extremos opostos de um corredor e o primeiro sai correndo, entrando em um elevador cujas portas se fecham no rosto do perseguidor, que, então, dispara vários lances de escada abaixo até conseguir alcançar o outro no instante em que este entrava em um táxi. Ora, devemos supor que Youssef teria escapado caso o agente não se transformasse subitamente no Usain Bolt dos degraus? E os vários outros policiais que deveriam estar cercando o hotel, onde se encontravam? É o tipo de bobagem que frequentemente compromete a eficácia de Polícia Federal, que também resolve transformar a apreensão do caminhão de palmito em uma perseguição orquestrada de maneira preguiçosa e que, além de risível, ainda obriga o público a aceitar a decisão do motorista de tentar fugir de três carros obviamente muito mais velozes e de disparar tiros de espingarda em sua direção.

Este tipo de artificialidade, porém, também é recorrente nos terríveis diálogos, que oscilam entre o expositivo e o tolo, por vezes combinando as duas características – como no instante em que um investigador se aproxima do chefe, que havia pedido a suspensão de um grampo telefônico, e diz: “Sabe aquele tempo entre o pedido para suspender a escuta e o momento em que a operadora a interrompe?”. Já Julio César, personagem de Bruce Gomlevsky, é apresentado com um “ele é o único que vai conseguir colocar ordem em tudo” que me fez esperar um complemento como “pois ele é o melhor policial que temos, mesmo sendo um rebelde resistente à autoridade!”. Este, por sinal, é um dos problemas mais graves de Polícia Federal, que jamais se decide quanto à definição de um protagonista, investindo um bom tempo em Júlio apenas para saltar para Ivan (Calloni) e de volta, criando uma narrativa sem centro e, consequentemente, sem coesão. (Uma das primeiras decisões de um roteirista diz respeito ao protagonista de sua história – e que Stavros e Lipsztein falhem em fazê-lo sugere um desconhecimento preocupante acerca de estrutura narrativa.) De todo modo, ao menos as cenas que trazem Ivan ganham força graças à performance de Antônio Calloni, que cria aquele que é o único indivíduo realmente multidimensional da obra.

Porque, de modo geral, Polícia Federal divide seus personagens em duas grandes categorias: os Heróis, cercados por famílias carinhosas e amigos devotados; e os Vilões, cercados por cúmplices (que também podem ser seus parentes). Assim, logo no início alguém pergunta a Júlio sobre sua mãe (“A quimioterapia vai começar na quinta-feira”) e, mais tarde, conhecemos também seu pai, que, esquerdista, não demora a fumar um baseado enquanto critica o filho por suas investigações (“Eu também votei nesse pessoal!”, protesta Júlio, numa das muitas tentativas óbvias do filme de sugerir a própria isenção). Em contrapartida, no único instante em que vemos uma doleira (leia-se: Vilã), esta surge em uma banheira cheia de espuma enquanto bebe champanhe – e fico surpreso que o diretor Marcelo Antunez tenha resistido à ideia de retratá-la com bigode a fim de que ela pudesse torcer suas pontas diabolicamente. Enquanto isso, Youssef mantém uma postura sempre cínica, fazendo piadinhas sobre tudo – até que, claro, Marcelo Odebrecht é preso e Antunez inclui um close do doleiro apreensivo (desta vez, porém, o cineasta não resiste ao toque final e traz um outro personagem perguntando “E aí? Não vai fazer piada, não?”).

O que nos traz às duas atuações mais problemáticas do projeto, já que envolvem personagens que não tiveram seus nomes reais trocados: a de Ary Fontoura como Lula e a de Marcelo Serrado como Sérgio Moro. Ator veterano e talentoso, o primeiro descarta qualquer complexidade ao optar por uma caracterização unidimensional que transforma o ex-presidente em um sujeito agressivo e raivoso, já abrindo a porta de casa para os agentes da PF com uma expressão culpada e hostil no rosto (“Quando eu voltar a ser presidente, vou me lembrar de cada um de vocês!”, ele afirma mais tarde, com um prazer claro de quem antecipa a vingança). Apresentando-se quase descontrolado em sua cólera, o Lula de Fontoura precisa ser apaziguado pelos bondosos e pacientes policiais, que reagem às suas ofensas com um pacífico “Calma, presidente, isto tudo é para sua segurança”. Por outro lado, se Lula é um vilão de James Bond, Sérgio Moro é encarnado por Serrado como um homem sempre calmo, ponderado e carinhoso com a família, sendo retratado pelo filme mais em casa (cozinhando para o filho, conversando com a esposa) do que no trabalho – e quando recebe o pedido para a condução coercitiva de Lula, sua primeira reação é a de dizer a fala mais engraçada do roteiro: “Temos que tomar cuidado para não constranger o ex-presidente”. Nem o verdadeiro Moro deve ter controlado o riso ao ver esta cena.

Aliás, Polícia Federal encara o juiz como um símbolo de pureza, ética e honestidade, esforçando-se para justificar/negar atitudes que o próprio Moro assumiu publicamente – e, de um ponto de vista semiótico, é sintomático que Ivan, assumindo a condição de narrador, diga que o magistrado “liberou” o áudio entre Dilma e Lula em vez de usar o verbo “vazar”, mesmo que Moro tenha assumido ter sido exatamente isto que fez. De modo similar, frequentemente ouvimos coisas como “Foi aí que o juiz salvou a operação” ou “Educadamente, ele lembrou o STF de que...”, agindo como se a menor falha de comportamento fosse algo impossível para aquele homem. Assim, não é surpresa que o roteiro passe rapidamente pela atuação questionável de Moro no caso Banestado e dê pouca atenção ao fato de ter libertado Youssef no passado sob a condição de que este “não cometesse mais crimes” – e outro momento acidentalmente divertido do filme é aquele em que o juiz descobre que o doleiro voltou a ser investigado pela PF e solta um incrédulo “Ele quebrou o acordo, foi isso?”. Pois é, doutor, um criminoso reincidente voltou a agir ilegalmente; que choque, não?

Mas Polícia Federal também reserva um tratamento pouco lisonjeiro aos jornalistas pertencentes a qualquer veículo fora da grande mídia – e segundos depois de mencionarem o nome de Lula pela primeira vez, os agentes da PF são interpelados por uma repórter que, pertencendo a um site claramente inspirado no “Brasil 247” (reparem a logomarca do microfone), imediatamente dispara raivosos e nada profissionais gritos de “Por que vocês estão tentando destruir o PT?” e “Vocês não têm o direito de influenciar politicamente o país!”. Porém, o maniqueísmo não se encontra apenas no que é visto na tela, mas também no que não é – e a forte atuação de organizações como a Globo e a Folha de São Paulo no sentido de transformar a Lava-Jato em uma história de heroísmo é algo que o filme não encontra o mesmo tempo para abordar. Algo parecido ocorre com entidades como a CUT e o MST, que são retratados como grupos determinados a provocar o caos mesmo que este possa resultar em derramamento de sangue, e com políticos da esquerda, como os histéricos parlamentares que avançam para cima de Ivan, o único indivíduo que se mantém calmo na sequência do depoimento no aeroporto.

No entanto, Polícia Federal aos poucos abandona qualquer tentativa de sutileza e traz os heróis justificando as próprias ações sem que qualquer contraponto seja feito: a condução coercitiva, por exemplo, inspira um deles a dizer “Fizemos a coisa certa; agimos até com cautela” e, mais tarde, eles se inspiram mutuamente com falas como “A gente está ajudando quem? O Brasil!” e defendem a própria imparcialidade com afirmações contínuas como “Só seguimos os fatos!”. Já em outro momento, é a montagem que se encarrega de transmitir a posição dos diretores: depois que alguém pergunta “quem botou o jabuti na árvore?”, referindo-se à diretoria da Petrobrás, o filme corta para panfletos da ex-presidente Dilma Rousseff espalhados pelo chão (acusando-a, portanto, e ignorando o fato de ter demitido Paulo Roberto Costa). Da mesma forma, frequentemente ouvimos agentes dizendo coisas como “O Planalto sabia de tudo!” e sugerindo a culpa de Lula através de “deduções” como “Quem mais mandaria?”.

A culpabilidade do ex-presidente, por sinal, é a grande tese motivadora de Polícia Federal, que, de forma inteligente, demora a usar seu nome, referindo-se a Lula apenas como “ele” durante boa parte do tempo e levando, assim, o espectador a preencher a lacuna e, consequentemente, a abraçar a acusação. Não é à toa, aliás, que ele é tratado quase como um supervilão, inspirando frases como “Se é pra atirar no Rei...” e um amedrontado “Ele é apenas um homem”. Já o didatismo presente na explicação da trajetória da Lava-Jato é gradualmente substituído por falas como “Eu sei que tenho que aprofundar mais, mas...” (seguida por uma acusação), “Isso não é obstrução de justiça? É, mas não tem como provar.” e “Isso é prova? Não, mas é indício”. Notem, por exemplo, o instante no qual a infame gravação entre Dilma e Lula é ouvida pelos agentes e constatem a veemência com que estes, chocados, imediatamente afirmam que ela “comprova tudo” embora dure cerca de um minuto e se resuma à primeira avisando que está mandando o termo de posse de ministro para o segundo “caso precise”.

Assim, quando chega ao seu desfecho, Polícia Federal praticamente já assume de vez suas intenções, levando Ivan, em sua derradeira narração, a elogiar a ação de Moro ao “liberar” o áudio e ao afirmar que “Lula não virou ministro, a Lava-Jato não acabou...”, forçando uma relação de causa-consequência terrivelmente desonesta. Do mesmo modo, os trechos de imagens de arquivo exibidos durante os créditos finais são selecionados cuidadosamente para reforçar a dignidade do juiz e dos agentes e a vilania dos representantes da esquerda – num recorte que ao menos faz uma rima narrativa com o início da projeção, quando uma epígrafe afirma que os “fatos aqui narrados ocorreram entre 1500 e março de 2016” apenas para logo em seguida passar correndo por todos os escândalos protagonizados pelo PSDB e desacelerar apenas ao chegar às gestões petistas. Como gosto de rimas, ponto para o filme.

Negando seu partidarismo, mas usando ironicamente expressões como “estrela cadente” e empregando até mesmo uma canção do Ultraje a Rigor em sua trilha (o vocalista da banda tornou-se ídolo daqueles que desprezam o PT e a esquerda brasileira), Polícia Federal – A Lei é para Todos não consegue nem mesmo perceber a ironia contida na cena em que alguém se lembra de um caso antigo presidido por Moro e aponta como, na época, aqueles que aceitaram fazer delação premiada a usaram apenas para “delatar a concorrência”.

Um momento de honestidade da narrativa que demonstra como os realizadores são capazes de enxergar tons de cinza quando estes não os impedem de ver apenas o vermelho.

Observação: há uma cena adicional após os créditos finais que, como todo o resto, tenta sugerir uma imparcialidade que, mesmo que venha numa possível continuação, nada poderá fazer para reparar a manipulação do original. Ah, sim: e como nos comentários no YouTube alguns afirmaram que devo ter "amado" o filme sobre Lula, linko aqui a crítica.

09 de Setembro de 2017

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Assista também ao videocast sobre o filme:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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