Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
03/11/2017 | 03/11/2017 | 4 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Netflix | |||
Duração do filme | |||
270 minuto(s) |
Dirigido por Mary Harron. Roteiro de Sarah Polley. Com: Sarah Gadon, Edward Holcroft, Rebecca Liddiard, Zachary Levi, Kerr Logan, Paul Gross, Sarah Manninen, Stephen Joffe, Elizabeth Saunders, Martha Burns, Will Bowes, Jonathan Goad, David Cronenberg e Anna Paquin.
(Este texto contém spoilers pontuais.)
Imagine a seguinte cena em filme: um homem, solitário e exausto, caminha por uma trilha deserta durante a noite até que, surpreso, encontra uma mulher desconhecida acampada em uma clareira e que lhe oferece uma bebida. Você temeria pelo personagem? Agora inverta os sexos e suponha que se trata de uma andarilha se deparando com um homem desconhecido durante a noite. Suas expectativas como espectador se tornam completamente diferentes e, subitamente, você pressente perigo na jornada da personagem - o que me faz lembrar de certa ocasião em que respondi à dúvida de uma amiga dizendo que não precisava ficar preocupada em andar por certa rua à noite, já que eu nunca havia tido qualquer problema, e ela respondeu com um simples e esclarecedor “Sim, mas eu sou mulher”. Estes exemplos, por si sós, já seriam o bastante para constatarmos como lamentavelmente vivemos em um mundo no qual, de modo geral, metade da população tem motivos para temer a outra metade.
Uma realidade que sutilmente se revela a raiz temática da ótima minissérie Alias Grace, baseada em um livro de Margaret Atwood e que, por sua vez, é inspirado em um caso real: o duplo assassinato, em 1843, de um proprietário de terras, Thomas Kinnear (Gross), e de sua governanta Nancy Montgomery (Paquin). Julgada como cúmplice do assassino James McDermott (Logan), a jovem Grace Marks (Gadon) é condenada à prisão perpétua e, 25 anos depois, um grupo liderado pelo reverendo Verringer (o cineasta David Cronenberg) se esforça para conseguir seu perdão e sua libertação. Para isso, contratam o alienista (leia-se: um psiquiatra) Simon Jordan (Holcroft) para que este converse com Grace e escreva um relatório apoiando sua soltura – e, aos poucos, o sujeito se vê obcecado pela mulher e em tentar descobrir a verdade acerca de sua participação no crime.
Dividida em apenas seis e econômicos episódios escritos pela atriz e diretora Sarah Polley, Alias Grace demonstra respeito à sua origem literária desde as epígrafes que abrem cada capítulo até a construção dos elegantes diálogos, mantendo sempre o desenvolvimento da narrativa em foco e evitando as “gorduras” tão comuns em várias séries contemporâneas. Enquanto isso, a diretora Mary Harron (Psicopata Americano) consegue se equilibrar bem entre o apuro estético (marcado pela belíssima fotografia de Brendan Steacy, que usa o esfumaçamento dos interiores com brilhantismo) e a necessidade de evocar a falta de saneamento e as condições brutais da época, adotando também uma estrutura narrativa que, cronologicamente fluida, jamais soa como desnecessariamente complexa – e, neste aspecto, o simbolismo da colcha costurada pela protagonista ao longo dos episódios (e ressaltada pelos constantes planos-detalhe de suas mãos) passa a dizer respeito não apenas à maneira como Grace constrói seu relato, mas também à forma como a própria Harron amarra toda a estrutura da obra.
A montagem, por sinal, é hábil ao reconhecer os momentos em que um dinamismo maior colabora para antecipar informações importantes (como os rápidos cortes no primeiro episódio que revelam detalhes do crime) e outros nos quais é fundamental que tenhamos tempo de observar as menores reações dos personagens. Além disso, a narração feita pela protagonista é essencial ao ocorrer em dois níveis simultaneamente, já que ela não só descreve os acontecimentos durante as sessões com o Dr. Jordan, como também comenta, em uma outra narração feita em um tempo que só descobriremos no último episódio, suas percepções sobre as sessões em si, sobre o médico e sobre suas próprias estratégias para manipulá-lo em maior ou menor grau. Com isso, Alias Grace deixa claro, desde o princípio, que estamos testemunhando na maior parte do tempo a versão da personagem-título e que esta pode não ser totalmente confiável – o que também é ilustrado por pequenas intervenções na montagem que revelam o que a moça está realmente pensando enquanto oferece outra resposta ao médico.
Esta ambiguidade, diga-se de passagem, é algo que já fica patente desde o emblemático plano que abre a série e que traz a protagonista mudando a expressão do rosto enquanto, em off, menciona as várias personas que lhe são atribuídas por quem conhece sua história – e tampouco é à toa que, ao longo dos episódios seguintes, frequentemente a vemos encarando diretamente a câmera (e o espectador) num olhar que praticamente nos desafia a julgá-la/decifrá-la. A performance de Sarah Gadon, aliás, é riquíssima justamente por conseguir executar a difícil tarefa de conciliar todas estas personalidades sem permitir que a personagem se torne apenas uma colagem de tipos diferentes, sem qualquer coesão. Para alcançar este efeito, Gadon constrói uma base de dores que reconhecemos como autênticas (é revelador, por exemplo, como a primeira vez que exibe emoção ao falar com Jordan ocorre ao discutir uma gravidez) – e, assim, são apenas suas reações a estas dores que oscilam de acordo com sua percepção sobre a pessoa que está ao seu lado, denotando uma estratégia de autodefesa concebida pela experiência e que sugerem que ela oculta quem é não por malícia, mas por ter aprendido que se expor é se tornar vulnerável ao outro.
Enquanto isso, Edward Holcroft retrata com eficiência a agitação crescente do Dr. Jordan, que é refletida não apenas em seus modos e na sua postura diante de Grace, mas também de suas roupas e de seu cabelo, que aos poucos vão se tornando mais descuidados. Rebecca Liddiard, por sua vez, se torna a grande revelação da série ao trazer doçura e ingenuidade a uma personagem que acredita ser bem mais atenta à crueldade alheia do que realmente é – e o destino de sua Mary Whitney marca toda a trama. Para completar, Anna Paquin evita que Nancy se torne apenas uma vítima ou uma “antagonista-que-mereceu-o-que-recebeu”: ao mesmo tempo em que exibe ressentimentos em relação a Grace, Nancy é capaz de se mostrar generosa e gentil, sendo sua grande tragédia o fato de ter iniciado uma relação com um homem que a acolheu não necessariamente por bondade, mas por julgar que conseguiria transformá-la facilmente em um objeto sexual. Neste sentido, é triste constatar como Nancy se torna hostil a Grace por ciúmes e também como esta julga aquela com um moralismo religioso barato que dificulta sua empatia pela situação delicada da outra.
Aliás, esta moralidade hipócrita que condena as mulheres e absolve os homens pela mesma atitude é algo que Alias Grace aponta com amargura – e o fato é que as três principais figuras femininas da obra (Grace, Nancy e Mary) são todas vítimas da cultura machista e patriarcal na qual vivem e também da brutalidade masculina. Em maior ou menor grau, é importante notar, praticamente todos os homens retratados na série cometem atrocidades contra mulheres: o pai de Grace, o médico que realiza abortos clandestinos, os patrões (e os filhos destes) e até mesmo os companheiros de trabalho que se encontram em similar estado de penúria (McDermott através da violência; Jamie, por testemunhar contra Grace claramente movido pelo ressentimento). E se o dr. Jordan inicialmente se apresentaria como uma exceção, não é preciso muito para que exiba uma crueldade repugnante com sua senhoria, a sra. Humphrey (Manninen).
E aqui é preciso apontar como é fundamental que Alias Grace tenha sido escrito, adaptado, protagonizado e dirigido por mulheres, já que o olhar que a série lança sobre todas estas atrocidades jamais comete o erro (infelizmente, tão comum) de fetichizar a violência contra a mulher. Quando Grace é molestada no manicômio ou torturada pelos carcereiros, não há qualquer traço da estética do exploitation; tudo que testemunhamos é puro horror (e não é acaso, também, que Nancy seja esquartejada por seu assassino, que nada faz com o corpo de sua outra vítima, um homem). No entanto, a ambição temática de Sarah Polley e Mary Harron vai além, já que a narrativa faz questão de reconhecer como um dos elementos da opressão masculina passa também pelo poder econômico – algo manifestado por Jeremiah quando aponta que “pobres são pobres em todos os lugares”. Do mesmo modo, um dos fatores que levam Grace a se sentir tão encurralada é o reconhecimento de que não possui perspectivas de melhoras em sua vida, já que o máximo que pode esperar é continuar trabalhando como criada e sempre subalterna às governantas, que têm uma origem social levemente superior.
Não é coincidência, portanto, que a única pessoa a se identificar com a situação de Grace – uma mulher pobre e imigrante – seja uma criada negra, que, ao ser indagada se não teria medo de uma assassina condenada, responde: “Medo por (ela) ter levantado a mão contra seu senhor?”.
Longe de se preocupar em condenar ou absolver sua protagonista, Alias Grace é uma produção forte por compreender que, culpada ou não, Grace é, em primeiro lugar, vítima de toda uma vida de opressão, abuso e dor.
08 de Novembro de 2017