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Críticas por Pablo Villaça

Era uma Vez... em Hollywood
Once Upon a Time... in Hollywood

Dirigido e roteirizado por Quentin Tarantino. Com: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie, Margaret Qualley, Austin Butler, Dakota Fanning, Damon Herriman, Luke Perry, Damian Lewis, Emile Hirsch, Mike Moh, Rummer Willis, Michael Madsen, Scoot McNairy, Timothy Olyphant, Clifton Collins Jr., Zoë Bell, Julia Butters, Lena Dunham, Nicholas Hammond, James Landry Hébert, Costa Ronin, Mikey Madison, Rafal Zawierucha, Bruce Dern, Kurt Russell e Al Pacino.

O Cinema de Tarantino sempre foi sobre Cinema. Na superfície, pode falar de racismo, nazismo, maletas com conteúdos misteriosos ou qualquer outro tema, mas todos são concebidos e desenvolvidos a partir não de um naturalismo/“realismo”, mas de um filtro composto pela cultura cinematográfica do diretor. Assim, não é preciso dizer que um longa intitulado Era uma Vez... em Hollywood trará Quentin Tarantino completamente entregue a suas obsessões, o que pode ser sintetizado pelo plano no qual vemos os pés de uma bela mulher sobre uma poltrona de uma sala de exibição enquanto um filme é projetado ao fundo. Mais tarantinesco do que isso, só se Samuel L. Jackson estivesse escrevendo epítetos raciais no calcanhar da garota.


O longa, por sinal, não perde tempo em escancarar este mergulho na própria indústria, já que a projeção abre com uma vinheta da Columbia da década de 60 e, menos de 20 segundos depois, escutamos com destaque um “Wilhelm scream”, uma antiga e recorrente piada interna de cineastas e editores de efeitos sonoros. A partir daí, somos apresentados a Rick Dalton (DiCaprio), famoso ator de séries de TV que agora encontra-se nos primeiros estágios de sua descida rumo à obscuridade, e seu dublê e melhor amigo Cliff Booth (Pitt), que se mantém fiel ao sujeito em qualquer circunstância. Ao mesmo tempo, seguimos a atriz Sharon Tate (Robbie) em seus passeios e confraternizações por Los Angeles, o que é contraposto por aparições ocasionais das garotas da família Manson.

Se há algo importante para se saber antes de assistir ao filme, por sinal, é o fato de que este não gira em torno de uma trama nem busca criar uma história tradicional dividida em três atos (embora o ato final seja claramente definido); em vez disso, o que Tarantino procura fazer é imergir o espectador em uma época e em um lugar específicos: a Los Angeles do final da década de 60. Obviamente fascinado pela cultura e pela atmosfera do período, o diretor insere uma abundância de referências através de pôsteres, de títulos de filmes nas marquises de cinema, de trechos de série de TV (reais e imaginárias), de músicas e até mesmo de propagandas no rádio, pintando um retrato recheado de uma nostalgia – idealizada, como as nostalgias tendem a ser – ressaltada pelas cores quentes e saturadas da ótima fotografia do veterano Robert Richardson.

O preciosismo nos detalhes desta reconstrução de uma era também surge nos figurinos, sendo possível reconhecer até mesmo várias das roupas que determinados personagens vestem em cena e que são recriadas a partir de fotos célebres. Além disso, Tarantino faz questão de inserir passagens em locais como a Mansão Playboy, de identificar certas figuras através de legendas (como Steve McQueen, que é vivido por Damian Lewis, um sósia perfeito) e de passear com o público através de ruas e mais ruas de uma Los Angeles provavelmente reconstituída com o auxílio de efeitos digitais. Neste aspecto, devo apontar, há até certo exagero; poucas vezes vi, em um único longa, tantos planos que trazem apenas pessoas dirigindo e dirigindo e dirigindo, o que cria uma sensação de inchaço desnecessário aqui e ali.

Do mesmo modo, algumas das sequências que trazem filmes/séries-dentro-do-filme se estendem demais, como se Tarantino, apaixonado pela possibilidade de brincar de recriar produções que amava, não conseguisse excluir nada do que rodou. Não que os flashbacks (e, às vezes, flashbacks dentro de flashbacks) também não sejam longos, mas ao menos cumprem funções importantes – mesmo que para oferecer informações triviais, como o (hilário) motivo de Cliff não ser contratado pelos produtores de Besouro Verde -, já que ajudam o espectador a conhecer melhor os personagens. Além disso, estas digressões são um fim em si mesmas, marcando toda a filmografia de Tarantino.

Saltando continuamente entre Rick, Cliff e Tate, Era uma Vez... é favorecido por um elenco esplêndido (e que traz pontas de praticamente todo mundo que já trabalhou com o realizador): DiCaprio, por exemplo, cria uma figura vulnerável que, com uma leve gagueira quando não está recitando textos decorados, mostra-se inseguro quanto ao próprio talento, cobrando-se ao ponto da raiva ao esquecer falas ou oferecer performances que julga falhas. Já Brad Pitt, beneficiado por mais oportunidades pelo roteiro, cria um dos melhores tipos de sua carreira, já que Cliff, ainda que aparentemente satisfeito com sua posição subalterna perante o amigo, é um homem perigoso com um passado ambíguo (aqui, Tarantino possivelmente extrai elementos de Robert Wagner), mas também dono de uma personalidade afável e divertida. E há, claro, Margot Robbie como Sharon Tate, que é vista pela obra menos como a vítima mais célebre da família Manson e mais como um ideal de pureza. Enfocada com frequência enquanto dança com expressão feliz ou sorri afetuosamente para as pessoas ao redor, Tate comove, para citar uma cena específica, ao exibir um orgulho quase infantil ao assistir a Arma Secreta Contra Matt Helm em um cinema e notar o público reagindo bem à sua participação no projeto (e Tarantino demonstra respeito ao não recriar estas cenas, optando por retratar a Tate fictícia assistindo à Tate real – vivendo uma personagem fictícia – na tela, o que por si só já funciona como um reflexo estrutural do próprio filme).

Apesar do humor frequente do roteiro, no entanto, a simples presença de Sharon Tate na história imprime uma tensão subjacente à narrativa, já que sabemos para onde tudo está caminhando – e mesmo que Era uma Vez... não tenha uma trama rígida, a noite de 8 de agosto de 1969 atua como o ponto de convergência óbvio das trajetórias de todos os personagens. Aliás, Tarantino é hábil ao provocar inquietação no espectador sempre que a família Manson surge, destacando-se certa passagem envolvendo uma visita ao rancho no qual seus integrantes vivem (não posso dizer mais do que isso, mas vocês reconhecerão o momento).

O que nos traz ao terceiro ato e que (de novo evitando spoilers) se passa no dia dos assassinatos, quando, inclusive, uma narração em off (feita por Kurt Russell) basicamente ausente até então toma do filme – o que, considerando o título do projeto e o que ocorre a seguir, é mais do que apropriada. Dito isso, saliento apenas que os 25-30 minutos finais de Era uma Vez... em Hollywood cometem todos os excessos que poderíamos esperar de Tarantino (isto é um elogio) e atuam de maneira quase catártica, justificando o investimento cuidadoso no desenvolvimento dos personagens e de suas relações nas duas horas anteriores.

Porém, a característica mais surpreendente deste nono trabalho de Quentin Tarantino é o afeto presente na narrativa – tanto entre aquelas pessoas quanto do diretor por estas e pela época retratada. Pois, em última análise, o filme é um lamento pela inocência perdida, pela ruína da esperança de que um amor fraternal irrestrito se fizesse possível no mundo e pela tragédia provocada pelos desvarios de uma mente perturbada e sua influência sobre jovens impressionáveis.

Em sua meia-idade, Tarantino está ficando sentimental – e, ao menos aqui, isto é muito bem-vindo.

Texto originalmente publicado durante a cobertura do Festival de Cannes 2019.

21 de Maio de 2019

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Assista também ao videocast sobre o filme:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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