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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
04/11/2021 01/01/1970 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Paris Filmes
Duração do filme
135 minuto(s)

Marighella (2021)
Marighella (2021)

Dirigido por Wagner Moura. Roteiro de Felipe Braga e Wagner Moura. Com: Seu Jorge, Luiz Carlos Vasconcelos, Humberto Carrão, Bruno Gagliasso, Bella Camero, Guilherme Ferraz, Jorge Paz, Henrique Vieira, Carla Ribas, Herson Capri e Adriana Esteves.

Considerando a duração e a relevância histórica dos 21 pavorosos anos em que o Brasil viveu sob uma ditadura militar, nosso Cinema produziu relativamente poucos filmes sobre o período. É chocante, por exemplo, que uma figura relevante como Carlos Marighella tenha sido retratada em apenas dois longas-metragens não documentais: Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, e este novo filme que traz seu nome no título e marca a estreia na direção de Wagner Moura. (Entre os documentários sobre o tema, há o homônimo lançado em 2012 e sobre o qual escrevi aqui.)


Roteirizado por Moura e Felipe Braga a partir do livro de Mário Magalhães, Marighella tem início com o assalto ao trem pagador Santos-Jundiaí, em 1968 (uma das ações mais ousadas e espetaculares da época), e retorna brevemente a 1964, quando o personagem-título (Seu Jorge) foi baleado à queima-roupa dentro de um cinema por agentes da ditadura recém-instalada. A partir daí, acompanhamos sua decisão de formar a Aliança Libertadora Nacional (ALN) ao lado do companheiro Branco (Vasconcelos) para adotar a luta armada como estratégia de combate aos militares, sua relação com os freis dominicanos (história contada com mais detalhes em Batismo e que aqui é centralizada na figura vivida por Henrique Vieira) e a perseguição sistemática por parte do delegado Lúcio (Gagliasso), que não economiza na violência para exterminar aquele que passou a ser considerado o “inimigo número 1” do regime. Aliás, jamais fica claro por que a obra batiza os personagens como Branco e Lúcio, já que se tratam claramente de Joaquim Câmara Ferreira e de Sérgio Paranhos Fleury, respectivamente, mas discutirei isso (especialmente o caso de Fleury) mais adiante.

Abrindo a narrativa com um plano-sequência sensacional que acaba servindo como uma maneira de Wagner Moura estabelecer imediatamente suas credenciais como cineasta, o filme sem dúvida alguma é uma carta de apresentação notável: de grandes decisões (como a adoção de uma câmera nervosa que raramente deixa de se mover) a sutilezas elegantes de montagem (como o raccord que tem início com a esposa de um guerrilheiro abrindo uma porta e se encerra com a complementação do movimento por Marighella entrando em um aposento na cena seguinte), este é um longa conduzido com energia, visão e disciplina. Seja ao retratar o horror da tortura, seja ao enfocar de modo breve dois personagens se dando as mãos por julgarem que serão presos ou mortos em uma blitz, Moura jamais perde de vista os elementos humanos de uma história que poderia facilmente ceder lugar ao sensacionalismo ou ao puro espetáculo, o que seria um erro trágico.

Neste aspecto, é interessante notar como o grupo que cerca o protagonista constantemente expressa afetos com franqueza absoluta, trocando abraços, sacrifícios e declarações carinhosas, o que denota um companheirismo que pode ter base na ideologia, mas se solidifica na humanidade de cada um. Ao mesmo tempo, há um esforço claro – por parte dos personagens e do filme – para recobrar símbolos que os fascistas e populistas sempre tentam tomar para si, como o hino nacional e o próprio conceito de “amor pela pátria”. No entanto, ainda que compreensivelmente (e corretamente) veja Marighella, Branco e os jovens que os acompanham como representantes do lado certo do combate – sim, enfrentar o fascismo é sempre a posição correta -, o longa não busca romantizar seus atos, reconhecendo os momentos inevitáveis de feiura que uma luta como aquela causa (e o assassinato de um agente norte-americano é retratado com a crueldade e a frieza que chocam mesmo aqueles que tendem a compreender sua motivação).

De forma similar, o roteiro não teme questionar aspectos da personalidade de Marighella – como no instante em que Jorge (Capri, que, cabe dizer, realmente participou da resistência à ditadura) aponta que o companheiro adota uma “superioridade moral” preocupante ao falar da luta armada, minimizando a importância de outros modos de combate e oposição ao regime. Além disso, a obra jamais tenta suavizar o protagonista, o que seria uma traição à sua memória – e justamente por ser bastante possível que alguns (ou muitos) espectadores interpretem como condenação o momento em que este olha diretamente para a câmera, desafiador, e afirma que o que farão “é terrorismo mesmo”, é admirável que Moura o inclua com a confiança de que o contexto histórico se encarregará de demonstrar o contrário. (Infelizmente, sou bem menos otimista que o diretor, pois de um ponto de vista de comunicação a esquerda permitiu que as distorções históricas por parte da extrema-direita se propagassem demais – um erro recorrente que o próprio filme discute ao trazer os personagens comentando como movimentos de resistência em outros países ganharam força graças à mobilização do povo.)

Encarnando Carlos Marighella com a imponência reservada a mitos (que merecem este título), mas com a vulnerabilidade essencial para mantê-lo humano e ancorado à realidade, Seu Jorge evoca a fortitude ideológica que mantém o protagonista na luta e que é expressada pelo olhar intenso, pelos discursos enérgicos e pela insistência em jamais permitir que outros façam algo que ele mesmo não estaria disposto a fazer. Enquanto isso, Luiz Carlos Vasconcelos confere a Branco (leia-se: Joaquim Câmara Ferreira, já vivido por Nelson Dantas no altamente problemático O Que É Isso, Companheiro?) modos reservados e contidos que, contudo, não o tornam menos dedicado à causa. E se Jorge Paz interpreta sua versão de Virgílio Gomes da Silva (aqui batizado de Jorge) de modo trágico e tocante, Adriana Esteves demonstra seu talento habitual ao transformar seus poucos minutos como Clara Charf em uma participação essencial do ponto de vista dramático.

O que me traz àquele que considero o único problema grave do filme: o personagem de Bruno Gagliasso. Batizado como “Lúcio” embora seja inquestionavelmente uma representação do sociopata Sérgio Paranhos Fleury, o delegado interpretado pelo ator acaba assumindo, ao longo da projeção, o posto de Vilão (com “v” maiúsculo) que, mesmo justificado sob uma perspectiva histórica, aqui acaba por torná-lo um símbolo de toda a bárbara repressão militar. É questionável, por exemplo, a decisão de trazê-lo buscando o maquinista do trem assaltado pelos revolucionários (ao saber que este não foi procurado pela polícia, “Lúcio” comenta com o colega: “Não falei?”), investigando pessoalmente o banco assaltado pelo grupo (e intimidando um jornalista), torturando/matando presos políticos e confrontando um agente norte-americano enviado para apoiar os militares – e a questão aqui não é se o verdadeiro Fleury fez tudo isso ou não, mas o fato de que, ao colocá-lo no centro de todas as ações de repressão, o filme acaba sugerindo de forma inadvertida que todo o horror do regime se resumia a um ou mais psicopatas agindo de forma independente em vez de ser algo sistemático. Particularmente preocupante é o momento em que um grupo de militares ouve o norte-americano (um agente da CIA, creio) dizer que é “preciso quebrar a alma (dos revolucionários), mas certificando-se de que há um médico para garantir que eles não morram”, apenas para que Lúcio/Fleury se aproxime do grupo e defenda uma abordagem mais radical, novamente facilitando a intepretação de que os excessos eram iniciativas individuais, não a política oficial.

Talvez esta decisão narrativa não me incomodasse tanto caso, como já apontado, as obras que abordam os horrores da ditadura não sejam tão infrequentes em nosso Cinema. Não é à toa que, sou capaz de apostar, muitos de nossos compatriotas sabem mais detalhes sobre Watergate do que sobre Canudos; que sejam mais familiarizados com Lincoln do que com Jango; que compreendam mais o horror do Vietnã do que o do Araguaia.

Em 1992, quando os caras-pintadas dominaram as ruas com o “Fora Collor”, um fator importante para mobilizar a juventude, creiam (e eu estava lá como líder estudantil e discursando em carro de som, então creio ter uma boa ideia do que estou falando), foi o sucesso da série Anos Rebeldes, que enfocava justamente a luta contra a ditadura – e, não à toa, “Alegria, Alegria”, música de Caetano que serviu como tema da produção, era tocada em praticamente todos os atos. Esta é uma lição que nosso setor audiovisual deveria ter aprendido melhor: a de que a Arte – especialmente uma de massa – pode ter papel mobilizador por ser um registro histórico poderoso, uma forma de manter vivas e presentes lições que jamais deveriam ser ignoradas.

Como o alto preço de se permitir que fascistas ganhem espaço.

09 de Novembro de 2021

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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