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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
21/07/2022 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
HBO Max
Duração do filme
301 minuto(s)

Direção

Guto Barra , Tatiana Issa

Roteiro

Guto Barra

Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez
Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez

Dirigido por Guto Barra e Tatiana Issa. Roteiro de Guto Barra.

Na noite de 28 de dezembro de 1992, um ator medíocre que atuava em uma novela de televisão e caminhava rapidamente rumo à obscuridade cercou o carro de uma jovem colega de elenco logo após saírem da emissora e, com um soco, a deixou inconsciente. Em seguida, depositou a vítima no banco do carona de seu veículo e assumiu o controle daquele que pertencia à moça, conduzindo-o até um local remoto e sem iluminação a alguns quilômetros dali enquanto era seguido pelo outro carro, que agora era dirigido por sua esposa. Então, carregaram a atriz por alguns metros para fora da estrada e, protegidos por arbustos e pela escuridão, desferiram doze golpes de punhal (ou faca) no tórax da garota – embora a ordem e o número de punhaladas dadas por cada um seja algo que apenas os dois saberiam responder. Aos 22 anos de idade, Daniella Perez teve sua vida destruída sem que pudesse esboçar qualquer defesa.


Estes são os fatos – todos amplamente comprovados durante os julgamentos por laudos periciais e/ou testemunhas.

Porém, nos 30 anos que se seguiram, sempre que o caso me vinha à mente eu tinha lembranças vagas sobre como Perez havia sido morta durante uma discussão depois que o assassino a levara até um local afastado para que pudessem conversar enquanto sua esposa escutava tudo a fim de convencê-la de que não estava tendo um caso extraconjugal – um plano que saiu de controle quando a companheira se revelou e confrontou a moça, que acabou sendo atingida por golpes de uma tesoura que estava no porta-luvas de um dos carros. Talvez houvesse de fato um relacionamento adúltero entre eles; talvez não. O que importava realmente era a violência e a crueldade do crime em si.

Pois eu estava completamente equivocado tanto com relação aos fatos quanto acerca da importância das circunstâncias, já que aceitar a existência de um caso amoroso entre Perez e seu assassino era admitir uma violência adicional contra a jovem. Aliás, se exponho minha ignorância sobre o crime – algo que poderia ser irrelevante – é por saber que esta confusão certamente foi compartilhada por boa parte daqueles que ouviram falar sobre o assassinato (leia-se: todo o país), já que esta foi a narrativa dominante durante os anos que se seguiram à morte da atriz.

O que torna a série documental Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez essencial por se apresentar não como uma exploração sensacionalista de uma história trágica, mas como um resgate importante da trajetória e da memória da vítima.

Contando com uma estrutura convencional construída a partir de entrevistas e imagens de arquivo que se atêm de modo geral à ordem cronológica dos acontecimentos, os cinco episódios da série são didáticos sem que isto os impeça de, aqui e ali, seguirem certas tangentes que podem parecer desconectadas do tema principal, mas acabam retornando de forma elegante ao centro da questão, enriquecendo a narrativa e permitindo que o espectador tenha uma visão abrangente do caso e suas complexidades. Além disso, os diretores Guto Barra e Tatiana Issa empregam reconstituições de maneira pontual – algo que costuma me incomodar em documentários, mas que aqui é feito sem exagero, lembrando um pouco a abordagem de Errol Morris no brilhante A Tênue Linha da Morte, que se tornou um paradigma do gênero.

As entrevistas, por sinal, buscam dissecar todos os ângulos do crime através da extensa seleção de personagens, incluindo promotores, advogados, policiais (como um dos delegados do caso), amigos da família e jornalistas que cobriram as investigações e os julgamentos, trazendo apenas uma ou duas intervenções diretas dos cineastas durante os depoimentos (como no instante em que questionam as ações de um policial). Contudo, o fio condutor – e, de certo modo, a alma do projeto – é a mãe de Daniella, a escritora Glória Perez, que era justamente a autora da novela que trazia a filha e o assassino interpretando um casal que vivia uma relação conturbada. Obviamente carregando todo o peso de sua perda indescritível, Glória é uma figura cuja dor é palpável como os móveis à sua volta, surgindo em sua voz cansada e, principalmente, nos olhos que parecem chorar há décadas sem interrupção e que denunciam ter registrado imagens de horror que deixaram cicatrizes profundas. É o olhar, enfim, de uma mãe que vivenciou o maior pesadelo que alguém com filhos pode ter e que foi obrigada a revivê-lo inúmeras vezes ao longo dos anos - e que agora exprime a natureza de seu luto com a eloquência de alguém que pensa como escritora e já teve que discutir sua tragédia em inúmeras ocasiões.

É notável, diga-se de passagem, constatar a força de Glória, que, como tantas outras mulheres que transformaram a perda dos filhos em uma causa nobre (vide as Madres Buscadoras mexicanas, as Mães da Praça de Maio argentinas e as Mães de Acari brasileiras), primeiro se dedicou à tarefa de descobrir exatamente o que havia acontecido com a filha ao perceber que a polícia parecia se contentar com a confissão do assassino e que, a seguir, voltou sua atenção à inclusão do homicídio qualificado entre os crimes hediondos previstos por Lei, conseguindo juntar mais de um milhão de assinaturas para a causa, enfrentando a apatia comodista de deputados e senadores. Como se não bastasse, ela ainda teve que lidar com ameaças constantes de violação do túmulo de Daniella, o que a compeliu a exumar a filha para colocá-la em local mais seguro. (Releia a frase anterior e pense no horror da situação.)

A atuação da polícia carioca, enquanto isso, se mostrou exatamente como esperaríamos: apática, profundamente suspeita e assustadoramente incompetente. Já de início, há o absurdo testemunhado na cena do crime, que foi invadida por amigos e familiares de Daniella enquanto o corpo ainda se encontrava no local, trazendo todo tipo de contaminação possível – e se o assassinato da atriz não se tornou um dos inúmeros casos sem solução registrados no país todos os anos, isto se deveu ao puro acaso: vendo os dois carros parados num local escuro, o pai de uma moradora de um condomínio próximo, que visitava a filha durante as férias de fim de ano, decidiu anotar as placas dos veículos, estabelecendo, com isso, a presença do assassino no ponto em que o cadáver foi encontrado. Ainda assim, a esposa do criminoso teve sua confissão ouvida por um policial que deixou de prendê-la, uma bolsa contendo seis mil dólares carregada por Daniella desapareceu da cena e os incidentes que revelariam a premeditação do crime só foram descobertos graças à ação da mãe da vítima, que não só encontrou as testemunhas como foi determinante para que aceitassem depor (já que, claro – e com razão -, tinham terror da polícia). O documentário expõe também o papel suspeito (um eufemismo) do delegado Mauro Magalhães, que, funcionário de um centro de tortura durante a ditadura, obviamente continuou a demonstrar sua falta de caráter depois que esta chegou ao fim.

Mas Pacto Brutal não se esquece de apontar o dedo na direção de outra área profissional que exerceu um papel lamentável durante o processo: o jornalismo. Explorando de forma sensacionalista as circunstâncias da tragédia e a relação ficcional entre os personagens vividos pela vítima e pelo assassino, os veículos brasileiros contribuíram de maneira determinante para solidificar a narrativa errônea de que Daniella Perez tinha algum tipo de envolvimento com seu algoz (ou que, no mínimo, demonstrava interesse em tê-lo), divulgando imagens dos personagens da novela em abraços e beijos que propositalmente embaçavam a fronteira entre ficção e realidade com o objetivo de aumentar a audiência e a venda de jornais e revistas. Além disso, boa parte dos jornalistas demonstrou uma disposição repugnante de reproduzir as mentiras do assassino e de contribuir com as estratégias de seu advogado para criar todo tipo de confusão durante o processo.

Aliás, aqui cabe minha única grande ressalva ao projeto: a inclusão de entrevistas com a “jornalista” Sônia Abraão, que julgo uma das figuras mais repulsivas de uma área que já considero repugnante por natureza: o “jornalismo de fofoca”. Abraão, vale lembrar, desempenhou um papel possivelmente determinante na tragédia envolvendo a jovem Eloá Cristina, quando entrevistou ao vivo o criminoso que viria a matar a garota. Desde então, a criatura demonstrou disposição infindável de explorar de forma baixa e sensacionalista várias outras ocorrências pavorosas – e considerando como a própria Glória Perez comenta como parte da imprensa causou dores quase tão intensas quanto o assassinato em si, é lamentável que os realizadores tenham aberto espaço para uma representante inconteste deste tipo de cobertura.

O mais incompreensível neste sentido é que Guto Barra e Tatiana Issa demonstram, em vários outros pontos do projeto, um cuidado admirável com aspectos sensíveis da discussão. Em certo instante, por exemplo, quando os aspectos ritualísticos do assassinato são abordados, há o belo esforço  de estabelecer a distância entre as ações dos assassinos e as crenças e práticas de religiões de matrizes africanas, já que isto poderia contribuir para acirrar o preconceito que estas já enfrentam diariamente. Além disso, depois de apresentarem o depoimento de uma pessoa que diz ter escutado por acidente uma confissão específica feita pela assassina (um relato que já soa imediatamente dúbio pela maneira como é feito), os documentaristas encerram o episódio com o esclarecimento de que aquela informação não foi apresentada no julgamento e muito menos comprovada (mas compreendo sua inclusão na série, já que ganhou destaque na época e contribuiu para criar mais confusão sobre o caso).

No entanto, a decisão mais louvável de Barra e Issa é a omissão de qualquer depoimento por parte dos assassinos – especialmente a do homem que confessou a autoria do crime e cuja personalidade narcisística encontrou, na repercussão de seu ato odioso, a fama com a qual sempre sonhou (e é por esta razão que, mesmo ciente de que todos conhecem seu nome, me recusei a usá-lo neste texto; não tenho vocação para relações-públicas de psicopata). Aliás, o verme em questão não apenas destruiu uma jovem no início de sua vida como condenou a família desta a permanecer para sempre presa à sua própria existência vil, obrigando aqueles que amavam Daniella a testemunhar como o homem que a matou seguiu sua trajetória sem ter que lidar de fato com as consequências de seu ato (ou pior: sendo recompensado por este). Assim, ao contrário de tantos documentários sobre crimes reais que acabam por glamourizar os criminosos que retratam, Pacto Brutal estabelece o assassino como a criatura patética, insignificante e medíocre que é. Não sou, devo salientar, daqueles que defendem punição eterna para quem comete erros; de modo geral, se a pessoa foi julgada e cumpriu a pena, posso desprezá-la pelo que fez, mas não me entrego a sanhas punitivistas. Dito isso, os assassinos neste caso levaram basicamente um tapinha no punho como punição: serem condenados a apenas 19 anos por tirar a vida de uma jovem de 22 - e de modo tão brutal - já seria revoltante por si só; que tenham cumprido só um terço da pena é um insulto à sociedade.

E que o criminoso tenha se tornado pastor evangélico é uma piada (que, sinto dizer, já não me surpreende).

Felizmente, os diretores de Pacto Brutal optaram por concentrar o ato final do último episódio não nos malfeitores, mas na própria Daniella Perez (outro erro comum entre obras do gênero é tratar as vítimas apenas como um elemento da trama, não como ser humano): bela, talentosa, alegre e percorrendo uma trajetória ascendente em sua profissão, a atriz é vista em registros familiares que nos lembram que a imagem do cadáver maltratado, de olhos semiabertos e atirado no meio do mato é apenas uma pontuação (mesmo que final) em uma história bem maior, feliz e cheia de vida. Temos a oportunidade, naqueles minutos, de ver e ouvir Dani (como todos a chamavam) como uma pessoa, não como a vítima de um crime.

E isto lembra o espectador de que ela deve ser definida pela vida que levava, não pela morte que a levou.

28 de Julho de 2022

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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