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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
09/02/2015 09/02/2015 4 / 5 5 / 5
Distribuidora
AMC/Netflix
Duração do filme
54 minuto(s)

Better Call Saul - S01E01: Uno
Better Call Saul 1x01: Uno

Dirigido por Vince Gilligan. Roteiro de Vince Gilligan e Peter Gould. Com: Bob Odenkirk, Jonathan Banks, Rhea Seehorn, Patrick Fabian, Michael Mando, Michael McKean, Julie Ann Emery, Jeremy Shamos, Miriam Colon, Eileen Fogarty, Steven Levine, Daniel Spenser Levine, Raymond Cruz.


Introdução

Um dos maiores obstáculos no caminho de qualquer prequel (uma história ambientada num período anterior ao daquela que a originou) é o fato de já sabermos, desde o princípio, como tudo terminará. Assim, apenas uma narrativa muito bem construída será capaz de despertar e prender o interesse do espectador mesmo que este conheça seu desfecho – o que, no caso de Better Call Saul, ainda se somava ao peso das expectativas geradas pela riqueza dramática de sua predecessora, a fabulosa Breaking Bad.

Pois os realizadores Vince Gilligan (criador de Breaking Bad) e Peter Gould (criador do personagem Saul Goodman, apresentado na metade final de sua segunda temporada) conseguiram um pequeno milagre ao alcançarem não apenas a qualidade artística da série original, mas também ao enriquecê-la em retrospecto, expandindo nossa familiaridade com personagens secundários que ali conhecemos – como Mike Ehrmantraut (Banks) e Gustavo Fring (Giancarlo Esposito) - e introduzindo novas figuras que viriam a se tornar tão fascinantes quanto Walter White, Jesse Pinkman & Cia, convertendo uma breve frase dita por Saul Goodman (Odenkirk) em um momento de desespero (“Não fui eu, foi Ignacio! Eu sou amigo do Cartel! (…) Não foi Lalo quem mandou vocês?”) em inspiração para duas figuras marcantes em Better Call Saul, Ignacio “Nacho” Vargas (Michael Mando) e Lalo Salamanca (Tony Dalton).

O que me força a fazer uma consideração, antes de começar a analisar a série, sobre qual seria a melhor maneira de visitar o universo concebido por Gilligan e seus parceiros mesmo reconhecendo que a ordem cronológica de produção é uma escolha natural (ou seja: Breaking BadEl Camino Better Call Saul). Sim, isto permite que referências à primeira sejam introduzidas de modo divertido nesta última, gerando também certo suspense quanto aos destinos daqueles personagens de Saul que não víramos em Breaking Bad, mas aqui me arrisco a fazer uma sugestão diferente para aqueles que ainda não assistiram a nenhuma destas obras, recomendando que vejam Better Call Saul até o nono episódio da última temporada (“Fun and Games”), saltando a seguir para Breaking Bad na íntegra e só então retornando para encerrar esta prequel (já El Camino pode ser visto logo após a série original ou – como prefiro – depois da conclusão de Saul). Adotando deste modo a ordem cronológica da história como parâmetro, creio que a experiência se tornará mais rica por tornar Fring, Mike e Saul ainda mais multifacetados em BB e, principalmente, por “corrigir” um problema que o próprio Vince Gilligan identificou nas temporadas finais daquela série: a recusa de muitos espectadores de enxergarem Walter White (Bryan Cranston) como o vilão que se tornaria, buscando justificar até suas ações mais desprezíveis. Ora, ao surgir como um elemento disruptivo nas trajetórias dos personagens de Saul, Heisenberg (o pseudônimo criminoso de White) finalmente será visto sob a luz adequada. Ao menos, em teoria.

 

“Uno”

Ao longo de cinco temporadas e 62 episódios entre 2008 e 2013, Breaking Bad acompanhou a jornada do professor de química Walter White desde seu diagnóstico de câncer de pulmão até sua transformação no principal produtor e distribuidor de metanfetamina dos Estados Unidos, ilustrando no processo a total erosão de seus princípios morais e de sua humanidade. Este tema, aliás, era introduzido com elegância nos primeiros minutos da série ao trazê-lo explicando aos alunos como a química era “o estudo da matéria. Mas prefiro vê-la como o estudo da mudança. (…) Isto é a vida, não? (…) É crescimento seguido por decadência e por transformação” – um resumo do caminho que ele mesmo percorreria a seguir.

Neste sentido, Better Call Saul mantém a coesão da série original ao seguir a decadência moral de seu personagem-título que, mesmo já exibindo tendências criminosas desde a infância, busca encontrar um caminho que reflita suas melhores intenções até ser arrastado para o abismo ético no qual despencou por acreditar, como expressa neste piloto apropriadamente intitulado “Uno”, que “o dinheiro é o ponto central”.

Dirigido por Gilligan a partir de roteiro co-escrito por este ao lado de Gould, “Uno” estabelece desde o princípio a lógica visual que guiará a série, iniciando a temporada com flashforwards em preto-e-branco que nos mostrarão a vida do protagonista após os incidentes vistos em Breaking Bad e retornando no tempo para investigar como ele se tornou o advogado criminoso de roupas espalhafatosas que encheria a cidade de Albuquerque com seus anúncios cafonas marcados pelo bordão que intitularia não só seu primeiro episódio em BB como sua própria série posteriormente. Agora usando o nome falso de “Gene Takavic” e trabalhando como gerente de uma confeitaria especializada em rolos de canela que faz parte de uma grande franquia e funciona num shopping da cidade de Omaha, no Nebraska, Saul Goodman leva uma existência ao mesmo tempo tensa e entediante, oscilando entre a paranoia de ser preso e o aborrecimento de um cotidiano a anos-luz de distância de sua antiga rotina como subcelebridade jurídica no estado do Novo México.

Acompanhada pela canção “Address Unknown” (“Endereço desconhecido / Nem mesmo um traço seu”, canta Brian Kenny), a introdução remete às sequências em Breaking Bad na qual víamos o preparo da metanfetamina azul em detalhes ao enfocar, desta vez, a confecção dos tais rolos de canela e a rotina de “Gene”, que inclui a limpeza do estabelecimento, a supervisão dos equipamentos, a orientação dos funcionários e diversas outras tarefas que ele executa com os olhos vazios e os lábios contraídos numa expressão de sofrimento. Combinando a lentidão da música com um ritmo igualmente (e acertadamente) preguiçoso em sua montagem, esta sequência inicial evoca um tom claustrofóbico também através das inteligentes composições de quadro do diretor de fotografia Arthur Albert, que com frequência mantém Saul sufocado nos cantos da tela e cercado (ou mesmo parcialmente coberto) por objetos, móveis e paredes que o aprisionam no restaurante e também em sua própria casa, diminuindo-o de modo similar através de planos plongé (com a câmera apontando diretamente para baixo) ou de travellings que se afastam do personagem enquanto nos afastamos e subimos em uma escada rolante. Preso em um mundo escuro e (cof-cof) sem cores, “Gene” se entrega à paranoia e ao lamento pela perda da vida estimulante que levava, tentando resgatar um pouco daquela excitação ao revisitar seus antigos comerciais de tevê registrados em uma fita VHS e que, não por acaso, surgem em cores quentes refletidas nas lentes de seus óculos.

(Vale observar, por sinal, que as vinhetas de abertura dos episódios, que trazem justamente breves imagens relacionadas à persona “Saul Goodman”, têm uma textura típica daquela antiga mídia – e o mais fascinante: à medida que as temporadas da série vão avançando, estas introduções vão trazendo mais e mais artefatos que sugerem o desgaste das fitas ao longo do tempo. E não é absurdo enxergar nisso um símbolo da degradação moral do próprio protagonista com o passar dos anos.)

Tão eficiente quanto a melancólica sequência de abertura do piloto, porém, é o contraste que esta forja com o restante do episódio, que, como a maior parte da série, se concentra na trajetória formativa de James “Jimmy” McGill, que, depois de uma juventude dedicada a pequenos golpes, acaba seguindo os passos do irmão mais velho bem-sucedido, Charles “Chuck” McGill (McKean), e se tornando advogado. Frustrado com os baixos ganhos como defensor público, Jimmy ainda se vê compelido a cuidar de Chuck, que, sócio de um grande escritório de advocacia, agora passa os dias preso em casa em função de uma “alergia” misteriosa a eletromagnetismo. Aliás, o ambiente dominado pela escuridão da residência se converte em uma representação da relação combativa entre os irmãos, já que Chuck, com suavidade maior ou menor, com frequência deixa clara sua reprovação quanto à natureza trapaceira do caçula (e tampouco é acaso que a primeira vez em que vemos o personagem consista em um gesto para que Jimmy aguarde enquanto ele termina de datilografar uma carta, demonstrando também um sutil desprezo ao perceber que o outro confunde as capitais da Suécia e da Finlândia).

Criando uma divertida expectativa antes de revelar o rosto de Jimmy mais jovem, Vince Gilligan o apresenta como um personagem já icônico, enfocando sua sombra na parede, suas mãos e suas costas antes de mostrá-lo claramente num tribunal – e a própria imagem de Jimmy no centro da sala, dominando o ambiente, representa um contraponto brilhante ao que víramos pouco antes, quando sua versão derrotada surgia limpando as mesas do restaurante vazio. Além disso, a retórica do advogado nesta cena demonstra sua capacidade de contorcer os fatos ao seu favor, já que contextualiza as ações de seus jovens clientes de modo inocente, como um “crime sem vítimas” – até que, claro, o promotor se levanta e, sem dizer uma palavra, exibe uma gravação que expõe os atos inacreditáveis do trio, levando o próprio espectador a perceber de forma bem-humorada como havia sido manipulado pelas palavras do personagem-título.

 

Ainda assim, “Uno” cumpre bem a função de nos colocar ao lado de Jimmy ao retratá-lo vulnerável não apenas pelo fugitivo que se tornaria, mas por sua situação no início da carreira, quando, sem dinheiro e com poucas perspectivas, ocupa uma sala minúscula e amontada nos fundos de um salão de beleza (que com sua estratégia habitual ele identifica como “corporação”) e dirige uma lata-velha que o episódio apresenta estacionada ao lado de um Cadillac branco idêntico ao que ele dirigiria em Breaking Bad (numa gag que provocará o sorriso daqueles que a acompanhavam, mas que funciona também como simples contraste visual para aqueles que começaram a segui-lo aqui).

É interessante, aliás, notar como uma das portas do carro (amarelo) surge vermelha, já que, como em Breaking Bad, a utilização de cores por parte dos realizadores é algo cuidadosamente pensado em Better Call Saul, relacionando tons quentes (como o vermelho e o amarelo) a figuras moralmente dúbias e uma paleta mais fria (como o azul e o branco) a personagens mais “nobres” – e não é à toa que um dos irmãos Lindholm (vividos pelos irmãos Levine) sempre surge de vermelho, o que também pode ser observado na bolsa e na pulseira da ardilosa Betsy Kellerman (Emery). Igualmente reveladoras são as sombras no estacionamento em que Jimmy e Kim Wexler (Seehorn) conversam sozinhos pela primeira vez na série, quando a fotografia assume uma gritante influência do noir, sugerindo Kim como uma espécie de femme fatale (algo que tematicamente a série explorará posteriormente) e também a natureza daquele relacionamento (que guiará toda a série). Além, claro, de plantar o primeiro elemento de uma brilhante rima visual que será encerrada anos depois. Como se não bastasse, ao trazer Kim arrumando o lixo derrubado pelos chutes de Jimmy, “Uno” já oferece uma representação visual da dinâmica do casal, já que, de uma maneira ou outra, a advogada será forçada com frequência a lidar com os problemas criados pelo companheiro.

(E observem, por favor, como o posicionamento da câmera, a lente e o foco empregados por Arthur Albert deixam a lata de lixo momentaneamente maior do que o próprio Jimmy, ressaltando sua vulnerabilidade no início da história. Por sinal, não menos importante é a estratégia visual de situar o protagonista cercado no quadro por duas pessoas que ocupam o primeiro plano da composição, salientando sua inferioridade numérica e, consequentemente, sugerindo as dificuldades e perigos que o rodeiam.)

Contendo sua parcela habitual de referências cinematográficas (algo comum em Breaking Bad), “Uno” traz uma homenagem visual – intencional por parte de Jimmy – à icônica cena de Ned Beatty em Rede de Intrigas, ao passo que a simples escalação de Miriam Colon como a “abuelita” dos Salamanca ganha contornos intertextuais quando nos lembramos de que a atriz viveu a mãe de Tony Montana em Scarface. Do mesmo modo, aqui vemos pela primeira vez a gesticulação do personagem em direção a um telefone enquanto espera uma chamada importante, estabelecendo mais um ritual que veremos algumas vezes nas temporadas seguintes.

Equilibrando-se com eficiência entre o drama, o suspense pontual (especialmente na cena que culmina na aparição de Tuco Salamanca, mais uma vez vivido por Raymond Cruz) e o humor, “Uno” deixou claro desde o princípio que Better Call Saul não se contentaria em depender da boa vontade criada por Breaking Bad, arriscando-se para traçar seu próprio caminho e provar sua capacidade de contar uma história complexa que nos envolveria por si só.

Uma promessa que cumpriria nos 62 episódios seguintes.

 

Adendos que podem ser spoilers de Better Call Saul, Breaking Bad ou ambos:

Como comentei no texto, durante este primeiro episódio Jimmy diz para o irmão que “dinheiro é o ponto central” - uma posição que voltaria a defender, numa rima temática admirável, em uma conversa com Mike em “Saul Gone” anos depois.

19 de Agosto de 2022

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Os textos sobre os demais episódios de Better Call Saul podem ser encontrados aqui.

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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