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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
10/02/2015 09/02/2015 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
AMC/Netflix
Duração do filme
46 minuto(s)

Better Call Saul - S01E02: Mijo
Better Call Saul - 1x02: Mijo

Dirigido por Michelle MacLaren. Roteiro de Peter Gould. Com: Bob Odenkirk, Jonathan Banks, Rhea Seehorn, Patrick Fabian, Michael Mando, Michael McKean, Julie Ann Emery, Jeremy Shamos, Miriam Colon, Eileen Fogarty, Steven Levine, Daniel Spenser Levine, Jesus Jr., Cesar Garcia, Raymond Cruz, Peter Diseth.

“(Isto é) para quando você se der conta de que está no jogo”, diz Nacho Vargas (Mando) ao anotar seu telefone em um pedaço de papel para que o advogado Jimmy McGill (Odenkirk) possa encontrá-lo com facilidade. Trata-se de um gesto trivial, até inócuo (especialmente partindo de um soldado da família Salamanca), mas que marca o início da caminhada do protagonista de Better Call Saul em uma estrada cheia de tentações e perigos que o levarão até o instante em que certo professor de química entrará em seu escritório anos depois.


Marcando oficialmente a entrada de Ignácio (ou Nacho) na série, “Mijo” (uma contração de “mi hijo”, espanhol para “meu filho”, que é como a “abuelita” de Tuco o trata) é um episódio que, em tom e trama, se mostra bem mais próximo à abordagem narrativa de Breaking Bad do que o piloto “Uno” – ou, para aqueles que estão entrando no universo criado por Vince Gilligan com Better Call Saul, é uma sinalização da atmosfera que dominará boa parte da trajetória daqueles personagens. No entanto, mais interessante do que as ações futuras de Nacho, por exemplo, é o que sua postura revela sobre o rapaz: aparentemente atuando como braço direito de Tuco, Ignácio é o contraponto perfeito de seu patrão, empregando a razão enquanto este se entrega aos impulsos de violência e demonstrando que, também ao contrário do outro, não enxerga o assassinato como algo trivial. Do mesmo modo, a composição do ator Michael Mando, empregando um tom de voz suave e uma expressão corporal rígida, quase sempre tensa, logo leva o espectador a perceber como Nacho destoa dos companheiros, exibindo desconforto diante do destempero de Tuco e esforçando-se para mantê-lo sob algum controle – e não é a toa que também mantém a distância quando os pobres irmãos skatistas Cal e Lars Lindholm (vividos pelos irmãos Levine) têm as pernas fraturadas como punição por desrespeitarem a “abuelita” Salamanca (Colon).

Não que Nacho seja um inocente, já que logo aborda Jimmy com o objetivo de descobrir onde os Kettleman guardam o dinheiro desviado das contas do município a fim de roubá-los (e sem informar Tuco de seus planos) – e, seguindo a lógica do uso de cores que abordei ao discutir “Uno”, o personagem não apenas usa uma camisa vermelha sob outra em tons azuis na cena no deserto (afinal, ele não se entrega à agressividade) como mais tarde, ao procurar o advogado, já se livra das cores frias e abraça de vez o vermelho. Enquanto isso, Tuco não deixa dúvidas quanto à sua natureza sociopata, o que é refletido em seu figurino e, claro, na excelente performance de Raymond Cruz, que encarna a maldade, mas também a estupidez do sujeito (além de um cuidado surpreendente com a avó).

Dirigido por Michelle MacLaren, responsável por alguns dos melhores momentos de Breaking Bad e que sempre comprova seu talento para criar uma narrativa tensa, este episódio destaca o universo perigoso no qual Jimmy entrou graças à confusão feita pelos skatistas e que é ressaltado pela fotografia de Arthur Albert, que inicialmente mergulha Tuco nas sombras e confere a este um ar ameaçador através do primeiro plano em seu rosto dominado pela raiva. Da mesma maneira, o desequilíbrio introduzido na vida do protagonista é ilustrado em um belíssimo plano subjetivo com inclinação lateral de 90 graus que traz Tuco correndo em direção à câmera e que reflete aquele em que vemos Jimmy caído de lado no chão do deserto (o que, por sua vez, remete a quadros parecidos usados em pontos dramáticos inesquecíveis da série original). Além disso, a ambientação no deserto do Novo México permite que MacLaren acrescente um toque de western à cena, o que é explorado também pela trilha de Dave Porter, que chega a emular o estilo do mestre Ennio Morricone quando o personagem de Odenkirk se vê compelido a negociar com Tuco pelas vidas dos jovens. E assim como no episódio anterior, voltamos a ver o futuro Saul Goodman flanqueado no quadro por dois outros personagens, mantendo a lógica de opressão e vulnerabilidade.

Outro recurso simples (mas engenhoso) que a diretora utiliza ao lado da montadora Kelley Dixon para ampliar o horror da situação é a retirada de alguns frames durante a ação de Tuco ao ferir os skatistas – o que é feito no final do movimento de sua perna, acelerando o golpe e, consequentemente, sugerindo uma força ainda maior. Assim, quando mais tarde vemos Jimmy em um encontro com uma mulher cujo decote não consegue ignorar, não demoramos a entender como sua atenção pode ser desviada pelo sujeito que, ao lado, parte um tira-gosto que o faz lembrar do horror que havia testemunhado mais cedo (e o uso de câmera lenta e dos efeitos sonoros similares ao dos ossos partindo complementa o efeito). E já que mencionei o trabalho de Dixon, é preciso reconhecer também a excepcional sequência que acompanha o advogado conhecendo e defendendo vários clientes, começando com um belo raccord de movimento entre as portas do tribunal e da carceragem (e a escolha de uma composição de Vivaldi para acompanhá-la é tão inesperada quanto fantástica).

Mas “Mijo” encontra tempo também para explorar um pouco mais a relação entre Jimmy e o irmão Chuck (McKean): se antes víramos o primeiro trazendo compras para o segundo, que se vê isolado em casa, agora a dinâmica se inverte momentaneamente quando é o mais velho quem cobre gentilmente o caçula adormecido depois de uma bebedeira. Trata-se de uma passagem rápida, mas fundamental por estabelecer um afeto autêntico entre os dois homens apesar das claras diferenças de temperamento entre estes (e o olhar cético de Chuck quando Jimmy afirma não ter retornado aos pequenos golpes do passado é indício de como o afeto não o torna mais confiante no irmão). Confirmando também como os efeitos da eletricidade realmente causam desconforto físico em Chuck (sendo sua “alergia” real ou não), a sequência permite que MacLaren resgate outra marca registrada de Breaking Bad: os planos em que a câmera é situada dentro de algum objeto/espaço que é manipulado/acessado por um personagem e que aqui envolve uma espécie de grill a carvão usado para aquecer um ferro de passar roupa. Em contrapartida, vemos Kim Wexler (Seehorn) e Mike Ehrmantraut (Banks) apenas brevemente, mas ambos de forma significativa, do sorriso de aprovação (talvez orgulho?) daquela à impaciência deste. Para encerrar, outra figura recorrente da série surge pela primeira vez: o promotor Bill Oakley (Diseth), sempre disposto a dificultar as negociações com Jimmy.

Dito isso, toda a ação do episódio tem a missão de revelar elementos mais nobres da personalidade do protagonista, que, afinal, arrisca a própria vida para salvar os jovens skatistas usando aquilo que tem de mais eficaz: a lábia. Ao mesmo tempo, ele não hesita em adotar estratégias eticamente questionáveis quando estas lhe convêm, como, por exemplo, ao “subornar” a funcionária do tribunal com bichinhos de pelúcia (observem a coleção da garota ao fundo). E se “Uno” trazia uma referência a Rede de Intrigas, aqui somos apresentados ao hábito de Jimmy de dizer “It´s showtime!” antes de momentos importantes (sejam estes julgamentos ou golpes) e que é acompanhado por um gesto que deixa clara sua origem em O Show Deve Continuar, de Bob Fosse.

Ressaltando as condições miseráveis em que Jimmy vive (o plano plongée que o traz deitado no sofá-cama de seu minúsculo escritório parece sugerir uma prisão com as vigas de metal que atravessam o quadro), “Mijo” combina bem estes elementos dramáticos com o humor que passáramos a associar ao personagem em Breaking Bad, certificando-se, com isso, de fortalecer nossa identificação com o sujeito através de sua situação precária e de sua autoconfiança quanto ao seu poder de convencimento.

Algo que causa admiração até no irracional Tuco Salamanca, que, depois de ouvir mais um dos monólogos do advogado, mal consegue conter seu espanto ao dizer apenas “Uau. Você fala demais”.

E é isso que o torna tão irresistível.

 

Adendos que podem ser spoilers de Better Call Saul, Breaking Bad ou ambos:

É curioso que o episódio tenha início com Tuco cozinhando para sua “abuelita”, já que em Breaking Bad ele fazia o mesmo para seu tio Hector. Sociopata, sim – mas também neto e sobrinho dedicado, por que não?

A breve interrupção na negociação entre Tuco e Jimmy feita pelo capanga No-Doze (Garcia) ganha novos contornos quando nos lembramos de como, na série original, ele será espancado pelo chefe até a morte justamente por se meter em uma conversa deste com Walter/Heisenberg. O que volta a ênfase ao “sociopata, sim”.

20 de Agosto de 2022

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Os textos sobre os demais episódios de Better Call Saul podem ser encontrados aqui.

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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