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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
08/12/2022 21/10/2022 4 / 5 5 / 5
Distribuidora
Mubi
Duração do filme
102 minuto(s)

Aftersun
Aftersun

Dirigido e roteirizado por Charlotte Wells. Com: Paul Mescal, Frankie Corio, Celia Rowlson-Hall, Sally Messham, Brooklyn Toulson.

Minha mãe ficou viúva aos 27 anos de idade. Com dois filhos pequenos para cuidar (cinco anos e um), ela conseguiu algo que mesmo hoje, aos meus 48, não compreendo: manteve uma atmosfera de normalidade e amor que nos blindou (a mim e à minha irmã) de boa parte do impacto que a morte tão precoce de nosso pai deveria provocar. O curioso é que mesmo consciente de sua juventude à época, sempre que tento visualizá-la naquelas circunstâncias a imagino com o rosto que tem hoje – uma peça pregada pela memória que discuti ao escrever sobre o excepcional Estou Pensando em Acabar com Tudo, de Charlie Kaufman. Como resultado, há sempre algo de inalcançável na sabedoria e maturidade que projeto em minha mãe; em minhas lembranças, independente da idade que tenha nestas, ela é sempre a pessoa segura e quase infalível que minha perspectiva de filho criou.


De certo modo, Aftersun, longa de estreia da roteirista e diretora escocesa Charlotte Wells, funciona como uma investigação tardia de uma mulher, agora adulta, sobre o pai que via apenas nas férias quando criança, concentrando-se especificamente nos breves dias que passaram em um hotel na Turquia quando ela tinha 11 anos de idade. Vivida pela expressiva Frankie Corio, Sophie é uma pré-adolescente cujos modos seguros e perceptivos podem tanto ser sinais de sua maturidade precoce quanto (o mais provável) projeções feitas por sua versão adulta, que vemos apenas em breves flashforwards que alternam entre sua vida domiciliar e passagens claramente simbólicas que a trazem dançando em uma rave sob luzes estroboscópicas - pois embora a maior parte do filme acompanhe a pequena Sophie, logo torna-se claro que o que vemos passa, até certo ponto, pela ótica da mulher que esta se tornará.

O que, desta forma, justifica as cenas pontuais nas quais vemos apenas seu pai e que configurariam, assim, seus esforços para imaginar o que ele estaria vivenciando, já que aos poucos compreendemos como, sob a aparência alegre de um homem determinado a oferecer um passeio inesquecível para a filha, há um indivíduo angustiado e perdido. Interpretado por Paul Mescal com um misto de impulsividade própria da juventude (ele tem apenas 30 anos) e da amargura construída à medida que esta se afasta, Callum é um pai carinhoso que, apesar do claro amor que sente pela menina, mudou-se para a Inglaterra a fim de encontrar um futuro financeiramente melhor, sendo forçado a viver distante da garota. Jovem o bastante para ainda ser confundido por estranhos como irmão mais velho de Sophie, ele obviamente teve que fazer um considerável sacrifício financeiro para pagar por aqueles dias em um hotel humilde e pelos passeios turísticos na região – algo que a menina demonstra compreender, por exemplo, ao se desculpar por perder uma máscara de mergulho que sabe ser cara. Na maior parte do tempo, porém, eles exploram os espaços de lazer do próprio hotel, jogando sinuca, brincando na piscina e interagindo com os demais hóspedes (incluindo uma adolescente cujo bracelete, fornecido pelo estabelecimento, lhe dá direito a tudo que quiser pedir, reforçando a distância da realidade de Callum e Sophie para outras famílias mesmo naquele lugar).

Retratando momentos de intimidade da dupla a partir do registro da pequena câmera de vídeo analógica comprada por Callum, Aftersun emprega este recurso como uma âncora de certas memórias da Sophie já adulta, que aqui e ali pausa o que vê para estudar o rosto liso do pai enquanto, por exemplo, este ouve a filha perguntar o que ele imaginava, aos 11 anos, que estaria fazendo agora já adulto – um questionamento inocente que, no entanto, atinge o sujeito em um ponto de vulnerabilidade patente. Aliás, em diversos pontos o longa sugere que Callum vive um momento (ou toda uma vida) de instabilidade: incapaz de explicar exatamente por que está com o braço engessado e o ombro machucado (ou apenas relutante em fazê-lo), o homem descreve planos de negócios que soam impraticáveis mesmo que não o sejam, mas que o espectador (e a Sophie do futuro?) percebe de alguma maneira que ele jamais conseguirá realizá-los.

Com um olhar que exibe melancolia constante, Callum é ao mesmo tempo o Pai forte e sábio visto por sua filha criança e o jovem perdido e possivelmente deprimido percebido em retrospecto pela filha que agora tem sua idade, sendo admirável não apenas como esta multidimensionalidade é construída pelo ótimo roteiro, mas principalmente pela maravilhosa dinâmica entre Corio e Mescal. Aliás, até o interesse do sujeito por meditação e tai chi chuan sugere um indivíduo em busca de um equilíbrio que se mantém fora de alcance – e Wells e o diretor de fotografia Gregory Oke são hábeis ao constantemente evocarem o estado de espírito de Callum através das composições de quadro, seja ao sufocá-lo nos cantos (ou com elementos do cenário), seja ao enfocar sua imagem obscurecida, tênue, no reflexo de uma tela de tevê.

Mas é claro que Aftersun também é a historia da própria Sophie, que durante a viagem começa a descobrir sua sexualidade e a ter preocupações que vão além das familiares. Neste aspecto, sua confiança ao compartilhar certas experiências com o pai (como o beijo trocado com um garoto na noite anterior) é um símbolo do afeto entre os dois mesmo que conflitos pontuais acabem surgindo – e quando surgem, a menina sabe exatamente onde atacá-lo, machucando-o com a eficiência que só filhos adolescentes conseguem exibir.

O mais fascinante na construção narrativa de Charlotte Wells, contudo, é sua habilidade de estabelecer uma atmosfera inquietante mesmo nos momentos mais prosaicos, levando o espectador a experimentar a apreensão de que algo trágico ou traumático irá acontecer quando, na realidade, o que não percebemos é que já está acontecendo: a dor de Callum que, por mais sensível que seja, Sophie não pode apreender completamente por ser jovem e inexperiente demais – e será apenas na idade adulta que ela será capaz de juntar pequenos pedaços de suas recordações e montar um pouco melhor o quebra-cabeças que era seu jovem pai. Aliás, esta ideia de ecos de reminiscências que se formam é lindamente ilustrada pelo plano-detalhe da imagem em uma foto polaroid surgindo aos poucos.

E isto nos devolve à discussão inicial sobre a subjetividade de nossas lembranças e de como estas podem se transformar à medida que nosso tempo na Terra expande a capacidade que temos de enxergar o outro: se a princípio aqueles breves dias na Turquia se fixaram na mente da pequena protagonista como memórias de um passeio alegre, na idade adulta ela finalmente consegue ver a melancolia que dominava o pai e como os esforços deste para esconder sua angústia representavam um cuidado ainda maior.

O que novamente me faz pensar em minha mãe e me sentir comovido ao imaginar como era grande seu sofrimento e como era intenso seu amor para que tenha não só evitado que seus filhos o notassem, mas protegido-os a ponto de sentirem que tinham o lar mais feliz do mundo.

Que filme lindo.

10 de Dezembro de 2022

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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