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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
23/03/2023 22/03/2023 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Paris
Duração do filme
169 minuto(s)

John Wick 4: Baba Yaga
John Wick: Chapter 4

Dirigido por Chad Stahelski. Roteiro de Shay Hatten e Michael Finch. Com: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Bill Skarsgård, Ian McShane, Shamier Anderson, Lance Reddick, Clancy Brown, Marko Zaror, Rina Sawayama, Natalia Tena, Scott Adkins, Hiroyuki Sanada e Donnie Yen.

O personagem-título de O Cão dos Baskervilles pode até ser o canino mais famoso da ficção no que diz respeito à ameaça que representa, mas, em termos de mortes provocadas, ele não chega às patas da beagle Daisy, indiretamente responsável pela execução de algumas centenas de pessoas ao longo da série John Wick.


Iniciada sem muita ambição e contando uma história de vingança como dúzias de outras já produzidas pelo Cinema, esta surpreendente franquia foi se destacando do resto graças à competência de suas sequências de ação tanto em suas coreografias quanto na forma como estas eram apresentadas ao espectador – uma bem-vinda consequência da longa experiência de seu diretor, Chad Stahelski, em sua carreira prévia como dublê. Nos capítulos seguintes, porém, a escala destas sequências se ampliou ao lado da mitologia concebida pelos vários roteiristas que contribuíram com o projeto, espalhando sua história por vários continentes e explorando os meandros da sociedade secreta de assassinos profissionais que, supostamente milenar, controla os destinos de seus integrantes através de regras e rituais que em vários pontos parecem convergir com aqueles das religiões estabelecidas – e não é à toa que diversas passagens são ambientadas em igrejas, catedrais e basílicas. Por outro lado, é notável que a temida Cúpula e todo o submundo que administra tenham durado tanto tempo, já que os matadores que compõem este universo estão sempre mais ocupados perseguindo e eliminando uns aos outros do que alvos externos.

Mas isto talvez seja inevitável considerando como estes assassinos demonstram certa incapacidade de aprender lições básicas – como, por exemplo, a de não entrar no caminho de John Wick (Reeves), que elimina com tranquilidade as sucessivas ondas de atacantes que buscam eliminá-lo em troca de recompensas cada vez mais polpudas, havendo até alguns dispostos a protegê-lo temporariamente para que o valor prometido se torne ainda maior. Igualmente espantoso, vale dizer, é observar como os atos de violência e o caos criado pelos personagens não parecem atrair a atenção da polícia ou mesmo das pessoas comuns, que, em determinada cena em uma casa noturna, seguem dançando enquanto socos e tiros são trocados ao seu lado.

Isto, porém, não é um erro, mas uma opção narrativa clara dos realizadores, que aos poucos foram se afastando da relativa verossimilhança do longa original e abraçando mais e mais um tom fantasioso, quase cartunesco – o que pode ser sintetizado na composição do vilão Killa (Scott Adkins, outro veterano do gênero que, como Mark Dacascos no Capítulo 3, surge em uma participação memorável), cujo visual remete mais a um personagem dos quadrinhos do que a um ser humano real, com direito a um absurdo terno roxo, próteses que o deixam obeso e dentes de ouro que ele faz questão de exibir em um sorriso constante que disfarça o perigo que o sujeito representa. Esta natureza grandiosa de Killa, aliás, é ressaltada pela excelente direção de arte, que o situa diretamente sob as luzes de diversos refletores, destacando seu poder (e seu ego), e sob um imenso ventilador cujas pás se movem lentamente e são vistas em um ângulo alto que as transforma em foices prestes a decapitarem o (anti-)herói e seus companheiros.

Responsável por conceber o mundo físico da série desde o segundo filme, o diretor de arte Kevin Kavanaugh é hábil ao diferenciar os vários espaços vistos ao longo da projeção, contrapondo os colossais salões com gigantescas colunas habitados pelo vilão Marquês de Gramont (Skarsgård) aos subterrâneos sujos e amontoados (mas paradoxalmente mais aconchegantes em sua humanidade) controlados pelo Rei do Bowery (Fishburne). Do mesmo modo, Kavanaugh e Stahelski fazem questão de conferir personalidades distintas a cada ambiente que abriga alguma sequência de ação, do salão com vitrais japoneses à já mencionada casa noturna ocupada por Killa, passando pelo apartamento no qual uma das mais impressionantes cenas do Capítulo 4 ocorre (e que discutirei adiante) e pelo Hotel Continental de Osaka, com suas cerejeiras e seus balcões que, cercando o saguão, servem de ponto de defesa para dúzias de capangas controlados pelo gerente Shimazu (Sanada) – e a cena que ocorre na cobertura do edifício torna-se mais evocativa graças à fachada em arco com luzes vermelhas vista ao fundo e às folhas rosas da árvore distribuídas pelo chão.

O uso de cores, por sinal, é marcante neste Capítulo 4, que investe em tons fortes e saturados nos figurinos e mesmo nas luzes empregadas pelo diretor de fotografia Dan Laustsen, que banha os combatentes no hotel de Osaka com filtros vermelhos e verdes, incluindo também neons roxos aqui e ali (e o simbolismo destras três cores nos tons específicos que surgem na narrativa, remetendo a violência e morte, é perfeito). De maneira similar, o dourado que acompanha o Marquês expõe seu impulso de ostentação e reflete o imenso poder que detém depois de ser colocado no comando pela Cúpula – um poder que inclui usar o Trocadero em Paris como local de reunião (com direito a mesa de vidro e cadeiras) e a Basílica do Sagrado Coração como cenário de um encontro particular.

Estas, contudo, não são as únicas locações famosas utilizadas pela produção, que ambienta uma perseguição e um elaborado confronto em torno do Arco do Triunfo, usando os efeitos digitais para converter a praça Charles de Gaulle em um palco de violência que, como de hábito, jamais é interrompida por transeuntes ou pela polícia ainda que dúzias de veículos passem por ali no meio dos tiros e colisões. Aliás, é curioso contrapor esta sequência com aquela vista no início do filme e que, situada num deserto da Jordânia, traz Wick perseguindo inimigos em um cavalo enquanto veste o terno, a gravata e a calça pretas habituais.

E é claro que, assim como musicais se estruturam em torno de seus números de canto e dança, John Wick é construído para chegar aos seus complexos set pieces, como a extensa luta na casa noturna (com seus dois andares e cascatas internas), a exaustiva (para os personagens, não para o espectador) batalha nos 220 degraus que levam à basílica do Sagrado Coração e ao fabuloso confronto em um apartamento que Stahelski e Laustsen registram em um longo plano plongé que, flutuando sobre os vários cômodos do imóvel, acompanha Wick enquanto este dispara uma arma que é uma mistura de espingarda e lança-chamas contra dúzias de inimigos (durante os 169 minutos de projeção, o protagonista emprega todo tipo de armamento: pistolas automáticas, metralhadoras, facas, nunchakus, espadas e até mesmo uma carta de baralho). O mais admirável, no entanto, é que todas estas passagens são registradas de forma legível pelo cineasta, que emprega planos abertos e movimenta a câmera de modo disciplinado para permitir que acompanhemos cada golpe, salto, impacto e tiro disparado sem perder o dinamismo.

Isto é fundamental, por exemplo, para que testemunhemos a elegância dos movimentos de Donnie Yen como Caine, um assassino cuja eficiência em nada é diminuída pelo fato de ser cego, remetendo ao clássico personagem Zatoichi e ao guerreiro que o próprio Yen viveu em Rogue One – e o modo como o sujeito toca os objetos ao seu redor, usa sua bengala para medir a altura na qual plantar alarmes sonoros e se alimenta casualmente durante confrontos o estabelece como uma das melhores criações da série – e suas cenas com o sempre carismático Hiroyuki Sanada trazem peso dramático à narrativa graças à compreensão mútua sobre como se sacrificariam por suas filhas sem qualquer hesitação (e a cantora japonesa Rina Sawayama, que aqui estreia como atriz, impressiona com sua fisicalidade como a herdeira de Shimazu). Enquanto isso, Ian McShane segue se divertindo como Winston, articulando cada fala do sujeito como se fosse uma pérola de sabedoria, ao passo que Lance Reddick (morto precocemente pouco antes do lançamento da produção) firma o concierge Charon como uma das poucas figuras realmente íntegras da trama.

Atravessando o filme com um laconismo ainda maior do que nos capítulos anteriores, Keanu Reeves segue encarnando John Wick como um Homem Sem Nome contemporâneo – e a comparação com o pistoleiro vivido por Clint Eastwood na trilogia dos dólares é reforçada pelas referências feitas por Stahelski à obra de Sergio Leone, como o tema que remete à trilha de Ennio Morricone e o relógio de bolso que traz a foto da filha de Caine. Além disso, o estoicismo e a lentidão de fala de Wick servem para contrapô-lo ainda mais ao Marquês interpretado por Bill Skarsgård, que adora o som da própria voz e demonstra um respeito pelas regras da Cúpula ainda menor que o de Wick, que, apesar de tê-las infringido ao matar um inimigo dentro do Continental, insiste em seguir os códigos de seu mundo na maior parte das vezes. Só é uma pena que o roteiro de Shay Hatten e Michael Finch insista no clichê de retratar o vilão como alguém que aprecia a Arte ao trazê-lo assistindo a um balé e admirando pinturas clássicas.

Dito isso, é impossível não aplaudir a audácia de Stahelski ao abrir seu filme com uma referência a Lawrence da Arábia e encerrá-lo com outra a Os Selvagens da Noite, demonstrando não temer qualquer comparação apesar do preconceito com que o gênero no qual trabalha é visto por muitos – uma injustiça que discuti ao escrever sobre Hardcore: Missão Extrema e que relega obras brilhantes como Mad Max: Estrada da Fúria, Sem Tempo para Morrer e Missão: Impossível – Fallout à condição exclusiva de “entretenimento”, como se isto as desqualificasse como arte.

Pois se a série John Wick não representar a riqueza criativa e estética da qual o Cinema é capaz, não sei o que mais poderia fazê-lo.

Observação: há uma cena adicional após os créditos finais.

01 de Abril de 2023

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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