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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
20/07/2023 21/07/2023 5 / 5 3 / 5
Distribuidora
Warner
Duração do filme
114 minuto(s)

Barbie
Barbie

Dirigido por Greta Gerwig. Roteiro de Greta Gerwig e Noah Baumbach. Com: Margot Robbie, Ryan Gosling, America Ferrera, Ariana Greenblatt, Issa Rae, Hari Nef, Alexandra Shipp, Dua Lipa, Emerald Fennell, Simu Liu, Kingsley Ben-Adir, John Cena, Michael Cera, Rhea Perlman, Will Ferrell e a voz de Helen Mirren.

Barbie é um pequeno milagre. Co-produzido pela Mattel Films (uma empresa criada especificamente para lidar com este projeto), o longa dirigido por Greta Gerwig é um exemplo claro de como as ambições comerciais de uma obra não precisam destruir as artísticas para atingir o sucesso; o cinismo na crença de que as palavras show e business são incompatíveis já foi exposto diversas vezes ao longo da história do Cinema, das adaptações de livros famosos nos primeiros anos da Sétima Arte (como a de O Conde de Monte Cristo, de 1908) às obras-primas que o mestre Martin Scorsese segue realizando com êxito. Assim, o que nasceu para servir como vitrine de uma linha de bonecas acabou assumindo, nas mãos de uma cineasta inteligente, a condição de uma narrativa ambiciosa tanto estética quanto tematicamente, indo muito além daquela que supostamente seria sua função primordial.


Roteirizado por Gerwig ao lado de seu companheiro, o também diretor Noah Baumbach, Barbie já nos apresenta ao seu universo a partir de uma premissa ousada: a de que as bonecas que habitam barbielândia sentem orgulho pelo papel que desempenharam na resolução dos problemas enfrentados pelas mulheres no mundo real graças às suas versões temáticas (Barbies presidentas, médicas, escritoras, etc) e ao fato de terem sido criadas no fim da década de 50 para representarem uma alternativa às bonecas-bebês que pareciam resumir as perspectivas futuras de suas pequenas donas à condição de mães. Porém, depois que questionamentos existenciais começam a perturbar a Barbie Estereotipada (Robbie) e seu corpo começa a exibir sinais antes ausentes (como celulite), a protagonista decide visitar o mundo real para descobrir o que está acontecendo, sendo acompanhada por Ken (Gosling), cuja obsessão pela personagem-título logo é substituída por suas descobertas acerca das possibilidades representadas pelo patriarcado.

Porém, antes de discutirmos estas questões (sim, o parágrafo anterior, que sintetiza a trama de um filme estrelado pela boneca Barbie, contém a palavra “patriarcado”), é imprescindível o reconhecimento de como o longa conta com uma direção de arte brilhante que emprega a lógica visual dos brinquedos como base do ambiente ocupado pelas personagens: o interior da geladeira da protagonista, por exemplo, traz adesivos com as imagens de produtos, enquanto os diversos veículos se mostram relativamente pequenos para suas ocupantes. Do mesmo modo, a praia é tomada por areia de tom rosa (cor onipresente em suas várias tonalidades nos cenários), a água do mar e das piscinas é constituída de plástico rígido e os alimentos servem apenas para que Barbies e Kens finjam comer (ou melhor: para que as crianças que com eles brincam possam imaginar o processo de alimentação; para os bonecos em si, estas refeições são “reais”). Enquanto isso, a fotografia de Rodrigo Prieto é habilidosa ao ressaltar a vivacidade das cores da barbielândia e sua natureza lúdica, contrapondo-as à estética da realidade sem sentir a necessidade de dessaturar esta última – uma tentação óbvia à qual muitos teriam sucumbido.

Divertido tanto em suas gags visuais quanto nos diálogos (o trocadilho maldoso envolvendo “beach off” e “beat off” é inspirado), o roteiro também investe na metalinguagem como forma de tornar o absurdo de sua proposta narrativa mais orgânico, permitindo que uma música proteste contra a interrupção feita pela narradora (Mirren) e que esta, por sua vez, aponte como qualquer tentativa de insinuar que Barbie deixou de ser bonita está condenada ao fracasso quando sua intérprete é Margot Robbie (que, ao lado de Ryan Gosling, faz um trabalho excepcional). Além disso, Gerwig inclui várias referências eficazes que, por complementarem a proposta de seu filme, jamais soam gratuitas – da introdução que recria a sequência pré-histórica de 2001 – Uma Odisseia no Espaço até os cavalos invisíveis que remetem a Em Busca do Cálice Sagrado, passando por Amor, Sublime Amor, Matrix e – minha favorita – Playtime – Tempo de Diversão.

Mas Gerwig não está interessada apenas em piadas e referências cinematográficas; dona de uma filmografia curta, mas expressiva, a diretora sabe que o simples fato de ter aceitado dirigir uma superprodução estrelada por um produto a expõe a um escrutínio que talvez seus pares do gênero masculino não enfrentassem (ao contrário: é cada vez mais comum que cineastas independentes sejam contratados para comandar projetos caríssimos de grandes estúdios) – e, em parte por esta razão, poucas vezes um projeto desta escala ousou criticar com tanto empenho seus financiadores. Ao longo de seus 114 minutos, Barbie aponta como o poder político das corporações converteu as democracias em plutocracias, descreve a Mattel como uma empresa que estimula o consumismo e vende produtos que ajudam a destruir o planeta e salienta a hipocrisia de uma marca que manifesta orgulho por empoderar suas pequenas clientes, mas teve apenas duas mulheres no cargo de CEO em todas as suas décadas de existência. (Dito isso, o CEO interpretado por Will Ferrell exibe uma persona bem mais benigna do que o inicialmente sugerido; creio que demonizar o chefão da companhia mesmo através de um alter ego seria querer demais.)

Igualmente importante é observar o contraste das dinâmicas internas de Barbies e Kens: enquanto aquelas se apoiam mutuamente e pensam no coletivo, estes frequentemente se mostram agressivos e competitivos, como se geneticamente condicionados ao confronto (algo que nosso histórico de guerras ao longo dos milênios parece comprovar). Aliás, não é surpresa vê-los tentando construir um muro na fronteira da barbielândia em certo momento, já que Gerwig não disfarça seu olhar crítico acerca do tipo de macho que enxerga o mundo como um espaço constante de exclusão: os incels/red pill/trumpistas/bolsonaristas/fundamentalistas religiosos que insistem em discursos preconceituosos e repletos de ódio cujo subtexto é sempre o pavor que sentem diante de qualquer mudança no status quo – não que precisassem temê-la, já que, como diz um sujeito em determinado instante da projeção, continuam exercendo o patriarcado muito bem, tornando-se apenas melhores em disfarçá-lo.

Ao mesmo tempo, o filme articula muitas das frustrações que cerca de metade da população do planeta experimenta cotidianamente ao receber críticas e cobranças impossíveis de conciliar e que resultam num longo monólogo recitado pela personagem de America Ferrera que pode soar óbvio e expositivo, mas que se mostra essencial não só pela catarse que certamente proporciona ao verbalizar questões tão fundamentais em uma produção desta escala, mas também por explicitar algo que o público mais jovem precisa ouvir do modo mais didático possível.

Neste aspecto, admito que saí do cinema feliz não apenas com o filme em si, mas por reconhecer o tipo de pessoa que este irritaria - e minhas expectativas não foram frustradas, já que grupos conservadores logo passaram a denunciar a natureza política de uma produção voltada para uma demografia juvenil, ignorando convenientemente como toda Arte é política por natureza. Ou não devemos ler nada de mais na recorrente disposição das princesas da Disney de abrirem mão de tudo por seus amados? Será que a premissa de A Bela e a Fera, que envolve romantizar a decisão deste em manter aquela em cativeiro, não é uma mensagem em si? O fato de praticamente todos os personagens da franquia Harry Potter serem brancos é um mero acaso? Os instantes em que Han Solo beija Leia à força (ou ameaça fazê-lo) não são um reflexo da casualidade com que este tipo de atitude era (ou é) encarado de modo geral? Por que os conservadores só enxergam a existência de um discurso quando discordam deste?

E por que a Mattel permitiu que Greta Gerwig convertesse Barbie em um discurso feminista? Isto demonstraria uma postura progressista da corporação? Não se iludam: como o patriarcado, o capitalismo também aprendeu a disfarçar suas intenções – e desde que o retorno financeiro seja alto, executivo algum se importará com as aspirações ideológicas dos artistas que criam seus produtos (pois para as empresas, tudo é produto, não Arte). Sugerir, por exemplo, que Os Últimos Jedi não poderia ser uma condenação das elites econômicas apenas por ter sido produzido pela Disney (como muitos insistiram em fazer) demonstra apenas uma profunda ignorância acerca da lógica do mesmo sistema que estes indivíduos tanto admiram.

A boa notícia é que, demagogias corporativas à parte, Barbie é um reflexo dos esforços de sua diretora e de sua protagonista (e também produtora) para manterem sua integridade. Que no processo também tenham criado uma obra tão admirável artisticamente é algo que permite que os espectadores também possam sair no lucro.

07 de Agosto de 2023

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Assista também ao vídeo sobre o filme:

 

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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