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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
03/10/2024 04/10/2024 2 / 5 / 5
Distribuidora
Warner
Duração do filme
138 minuto(s)

Coringa: Delírio a Dois
Joker: Folie à Deux

Dirigido por Todd Phillips. Roteiro de Scott Silver e Todd Phillips. Com: Joaquin Phoenix, Lady Gaga, Catherine Keener, Brendan Gleeson, Harry Lawtey, Steve Coogan, Ken Leung, Bill Smitrovich, Zazie Beetz, Leigh Gill.

Estou cansado destas barreiras artificiais entre o musical e o drama”, diz o diretor teatral Jeffrey Cordova (Jack Buchanan) em uma cena de A Roda da Fortuna exibida para os prisioneiros do Arkham em certo momento de Coringa: Delírio a Dois. É uma passagem rápida que mal é registrada pelo filme, mas que busca, ainda que superficialmente, justificar de algum modo a abordagem narrativa da continuação em si, que também abre a projeção referenciando os cartuns clássicos da Warner que estabeleceram a marca Looney Tunes e que aqui resulta numa fraquíssima e óbvia sequência de animação comandada por um Sylvain Chomet que em nada lembra o realizador de As Bicicletas de Belleville ou mesmo de O Mágico.


Mas não é coincidência que o animador francês desaponte: nada neste Coringa 2 parece ter sido feito com o mínimo de prazer ou interesse. Não se trata apenas de falta de ritmo ou atmosfera ou ambição, mas de um problema na essência do projeto, que soa natimorto, como se os envolvidos estivessem trabalhando por pura obrigação e detestassem tudo acerca deste compromisso. Uma coisa é ser sombrio; outra é se converter em uma crise depressiva em forma de celuloide (ou de arquivo digital, para não ser anacrônico). Em um filme mais eficiente, a recusa do Coringa de contar piadas e sua incapacidade de gargalhar na maior parte da narrativa poderiam ser componentes de seu arco dramático, mas aqui remetem mais a uma analogia da obra em si.

Mais uma vez escrito por Todd Phillips ao lado de Scott Silver, Delírio a Dois tem início dois anos depois dos eventos do original e traz o personagem-título prestes a enfrentar o julgamento pela morte de cinco pessoas, incluindo a do apresentador interpretado por Robert De Niro (ninguém sabe que ele também assassinou a mãe). Demonstrando ter sentido os efeitos do período aprisionado em Arkham, Arthur Fleck (Phoenix) encontra-se ainda mais magro e abatido, em nada remetendo ao ícone no qual foi transformado por aqueles que incendiaram Gotham City inspirados por suas ações. Constantemente supervisionado pelo agente penitenciário Jackie Sullivan (Gleeson), o sujeito é levado por este a participar de uma dinâmica promovida na instituição por um professor de música, conhecendo ali a piromaníaca Lee Quinzel (Lady Gaga), que logo manifesta verdadeira fascinação pelo prisioneiro ilustre, despertando neste uma paixão que aos poucos afasta a passividade que o dominou. Enquanto a advogada Maryanne Stewart (Keener) se esforça para comprovar a insanidade de Fleck e, assim, impedir que seja condenado à morte, o promotor Harvey Dent (Lawtey, numa composição caricata) enxerga no caso uma causa imperdível.

Novamente fazendo um bom trabalho na construção visual daquele universo, a direção de arte e os figurinos criam uma Gotham do passado que, habitada por personagens que aparentemente odeiam qualquer cor mais intensa (com duas exceções óbvias), soa triste e claustrofóbica desde o primeiro segundo de projeção – e a fotografia de Lawrence Sher frequentemente encontra suas deixas de temperatura no humor do protagonista, chegando algumas vezes a saltar no mesmo plano de uma paleta verde doentia a uma luz quente e irradiante. Compreendendo como a percepção subjetiva do Coringa molda a forma como experimenta o mundo, Sher acerta, por exemplo, ao tratar sua entrada na sala do tribunal como um astro prestes a entrar em cena, usando a contraluz vista além da porta como uma substituta dos holofotes sobre um palco. Por outro lado, o diretor Todd Phillips por vezes parece se confundir com sua própria lógica, falhando, por exemplo, em justificar as cores intensas dos guarda-chuvas vistos em um plano plongée que em nada refletem o teor da cena, surgindo como pinceladas que tiram o foco da tela e denunciam um artista que esqueceu o que queria retratar.

E o que o cineasta queria dizer aqui? Por que investir em números musicais, por exemplo, se não há um interesse autêntico pelo gênero ou pelas oportunidades que pode oferecer? O conceito de retratar o espaço subjetivo do Coringa e de Harley Quinn através de sequências saídas de um musical tem potencial, mas Phillips não é capaz sequer de estabelecer regras que guiem estas intervenções narrativas – e não porque as músicas oscilam entre imaginações/alucinações/metáforas e performances que realmente ocorrem no mundo objetivo e são testemunhadas pelos demais personagens, mas sim porque de um modo ou de outro elas acabam sendo coreografadas (não muito bem, mas ainda assim coreografadas) e acompanhadas por instrumentos. Ainda pior é o efeito que estas interrupções provocam no ritmo do longa, já que, não tendo qualquer efeito sobre a “realidade”, frustram o espectador ao se apresentarem como tangentes, como meras distrações - e, sim, em um musical estas sequências servem ou para avançar a história ou para desenvolver os personagens e suas dinâmicas, ao passo que, aqui, isto ocorre em um único instante: aquele que, fazendo referência ao programa de tevê apresentado pelo casal Cher e Sonny Bono na década de 70, ilustra a insegurança do Coringa em relação às verdadeiras motivações de sua companheira. Como se não bastasse, as coreografias praticamente inexistem, as canções (sempre covers de clássicos populares nos Estados Unidos) são entediantes e até as performances de Gaga como cantora surgem contidas (com exceção de “That´s Entertainment” e “That´s Life”).

Infelizmente, como atriz ela também não tem muitas oportunidades de demonstrar o talento já exibido em Nasce uma Estrela e Casa Gucci (e a partir daqui, discutirei alguns elementos que podem ser vistos como spoilers): presa a uma não-personagem, já que a Lee Quinzel/Harley Quinn imaginada pelo roteiro de Phillips e Silver pouco mais é do que uma fã deslumbrada que poderia se chamar Maria das Dores sem que isto fizesse qualquer diferença, Gaga é obrigada a deixar que os figurinos componham aquela figura, permanecendo inexpressiva do início ao fim por essencialmente não ter matéria-prima para trabalhar. Limitada a um papel de stalker, Harley Quinn é uma manipuladora que não precisa de inteligência ou sutileza para cumprir seus objetivos, já que o Arthur Fleck/Coringa de Delírio a Dois é um idiota fraco incapaz de perceber as trapaças emocionais e psicológicas incrivelmente óbvias da parceira, incluindo a mentira-clichê sobre estar grávida.

E é aqui que o cineasta-roteirista deixa transparecer suas verdadeiras motivações ao investir neste projeto: obviamente ferido pelas acusações feitas por parte da mídia durante o lançamento de Coringa, quando o filme foi interpretado por alguns como um panfleto incel (algo do qual discordo e que abordei em minha crítica ao apontar que se trata de uma obra ideologicamente adolescente demais para ser vista como panfleto do que quer que seja), Phillips parece ter decidido usar Delírio a Dois para atacar tanto os hipotéticos incels que abraçaram o original quanto aqueles que o criticaram, demonstrando notável determinação em humilhar o protagonista de todos os modos possíveis – e, claro, comprovando sua dificuldade em entender as próprias intenções, ele acaba reforçando algumas daquelas acusações ao retratar Harley Quinn como uma mulher que manipula, humilha e trai o namorado, chegando ao fim da projeção como alguém que o filme claramente vê como sendo pior do que um indivíduo que matou seis pessoas (incluindo, lembremos novamente, a própria mãe). Arthur Fleck pode não ser um incel, mas Delírio a Dois certamente é.

É uma pena, portanto, que a caracterização sempre intensa e expressiva de Joaquin Phoenix seja desperdiçada desta maneira: convincente ao evocar a instabilidade psíquica de Fleck, o ator acaba sabotado pelo fato de o filme não se decidir com relação à natureza do personagem. Ele é um sociopata? Uma vítima das circunstâncias? Ele tem consciência da própria patologia? Aqui, ele abraça a própria lenda; ali, parece rejeitá-la da forma mais enfática possível – transformações que ocorrem aleatoriamente, não como parte de um arco ambicioso.

Até que, claro, faz um discurso através do qual quase podemos ouvir a voz de Todd Phillips declarando como foi vítima de interpretações maldosas e rejeitando não apenas os fãs do original (independente do que despertou sua admiração) como desistindo posteriormente até mesmo de ser um filme sobre o personagem-título, sugerindo que aquele que acreditávamos ser o vilão clássico do universo de Batman foi apenas uma inspiração trágica para o verdadeiro Coringa. (Ainda é certo considerar que Heath Ledger e Joaquin Phoenix receberam Oscars por interpretarem o mesmo personagem?)

E, assim, Delírio a Dois consegue uma proeza que poucas continuações – mesmo as piores – realizaram: a de piorar o filme original em retrospecto.

03 de Outubro de 2024

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Assista também ao videocast sobre o filme:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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