A cobertura da 74a. edição do Festival de Berlim é apoiada por leitores do Cinema em Cena (via apoio Pix) e também pela plataforma de educação Casa do Saber, que além disso se tornou parceira do site na série Cenas em Detalhes produzida para nosso canal no YouTube. Aliás, não deixe de conferir o desconto imperdível nas inscrições na plataforma que pode ser obtido usando o cupom CENASEMDETALHES! Para maiores informações sobre como usá-lo, basta clicar aqui!
Dia 11 e final
36) A região conhecida como Masafer Yatta, localizada no sul da Cisjordânia, compreende cerca de 20 vilarejos que o governo de Israel insiste em declarar como ocupações ilegais – a ironia – que foram estabelecidas depois da década de 80, quando a área já havia sido declarada pelos israelenses como local de treinamentos militares. Insistindo que as vilas eram o lar de suas famílias há gerações, os palestinos apresentaram mapas desenhados no início do século 19 que apontavam a existência das aldeias e até mesmo um livro escrito por um geógrafo israelense em 1931 que reforçava este fato, mas a Suprema Corte do país rejeitou os argumentos e determinou a remoção de todos os moradores, transformando o cotidiano daqueles indivíduos em um verdadeiro inferno.
Rodado ao longo dos últimos quatro anos, No Other Land é um documentário impactante que registra o terror vivido pelos palestinos situados em Masafer Yatta, que enfrentam as ações frequentes da IDF (Israel Defence Forces) e são obrigados a testemunhar a destruição de seus lares e de qualquer outra infra-estrutura, por mais precária que seja: banheiros químicos são despedaçados, poços de água são preenchidos com cimento e até os minúsculos parquinhos para crianças têm seus brinquedos achatados. Ao longo dos 95 minutos de projeção, são inúmeros os registros de famílias tentando retirar seus pertences de suas casas antes que estas sejam demolidas e se refugiando em cavernas que acabam por se tornar residências improvisadas.
E apesar de tudo elas resistem, reconstruindo o que foi derrubado durante à noite mesmo sabendo que provavelmente no dia seguinte verão o trabalho ser desfeito por tanques e escavadeiras – e se insistem nas obras é porque sabem que é a única forma de evitarem que a terra seja tomada de vez pelas forças de ocupação. Além disso, ao longo das décadas os palestinos foram obrigados a se tornar especialistas neste tipo de construção secreta, chegando a erigir uma escola para as crianças da região que só deixou de ser ameaçada de demolição quando o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair caminhou pela área durante sete minutos em 2015. Ou melhor: a ameaça foi suspensa por algum tempo, já que anos depois Israel a destruiria – e a imagem das crianças recolhendo apressadamente bolinhas coloridas de plástico para salvá-las das máquinas é uma das mais devastadoras do longa.
Realizado por um coletivo de jornalistas/ativistas de ambos os países, No Other Land tem como guia e protagonista o palestino Basel Adra, cujas memórias incluem as várias ocasiões em que o pai foi preso por se opor à ocupação – algo que se repete durante as filmagens. Servindo como avalista do israelense Yuval Abraham para que este consiga entrevistar seus conterrâneos já tão traumatizados pelas ações da IDF, Basel sabe como coloca a vida em risco ao gravar abertamente as demolições, expondo os rostos dos militares que, não raro, o ameaçam e agridem – uma coragem refletida na valentia de diversos adolescentes palestinos que ao longo da projeção são vistos se posicionando diante de homens fortemente armados enquanto tentam impedi-los de levar adiante suas ordens de obliterar os vilarejos.
Infelizmente, esta bravura frequentemente resulta em tragédia, já que, empoderados pelo judiciário israelense e pelo exército, civis sionistas armados surgem para tentar estabelecer assentamentos na área – e em certo momento, No Other Land acaba registrando o instante chocante em que um palestino chamado Harun Abu Aran tenta impedir que os invasores levem o gerador de eletricidade de sua casa e é baleado à queima-roupa, tornando-se paraplégico e sendo assim condenado a uma morte lenta, já que as limitações impostas por Israel o impedem de receber os cuidados necessários para tenha uma vida minimamente aceitável (e, de fato, ele morreria dois anos depois em uma caverna empoeirada e úmida). Não é à toa que os colonos mantêm os rostos cobertos para evitar identificação; suas ações são criminosas (mesmo que tenham o apoio do exército e do Supremo israelense) e sabem disso.
Salientando como os palestinos vivem basicamente em um campo de concentração, já que não têm o direito de sair do país, não podem conduzir veículos com placas diferentes das verdes que os identificam (e que só podem circular naquele território) e podem ter suas casas invadidas e revistadas a qualquer momento e sem mandado pelos militares, No Other Land é um filme enlouquecedor que leva o espectador a testemunhar como é o cotidiano de um povo tratado como invasor em sua própria nação e que não tem qualquer segurança quanto ao futuro, já que a qualquer instante pode ver o pouco que conseguiu construir sendo destruído pelos verdadeiros invasores – e sem direito a recurso.
Como se não bastasse, qualquer protesto contra a ação de Israel é imediatamente recebido com acusações de “antissemitismo”, o que não poupa sequer os ativistas judeus (israelenses ou não) que tentam se posicionar contra o sionismo. Uma prova disso, diga-se de passagem, aconteceu no próprio Festival de Berlim, quando Yuval Abraham e Basel Adra subiram ao palco depois que o filme recebeu o prêmio de melhor documentário: agradecendo a distinção e reforçando as denúncias feitas pelo longa, Yuval (que, lembremos, é israelense) logo foi atacado pelo prefeito da capital alemã, que o acusou de antissemitismo e ameaçou retirar o apoio financeiro que a cidade oferece ao evento caso seus organizadores não se retratassem publicamente pela fala do jornalista. Detalhe: o prefeito, Kai Wegner, membro de um partido de direita, não é judeu. O mais trágico e frustrante: o festival removeu o discurso de Yuval de suas redes sociais.
Não é surpresa, portanto, que Israel siga em sua campanha genocida em Gaza – e não me refiro apenas às dezenas de milhares de mortes nas últimas décadas, mas aos ataques ocorridos nos últimos cinco meses e que resultaram em mais de 30 mil mortos, incluindo mais de 12 mil crianças (um número exponencialmente maior que o das vítimas do ataque bárbaro promovido pelo Hamas em 7 de Outubro); se o país jamais é punido pelo horror que impõe aos palestinos (ou mesmo publicamente criticado), por que deveria interromper o processo de remoção/eliminação daquele povo?
A esperança é que obras como No Other Land sirvam para expor todas estas barbaridades e, assim, acelerem uma reação que ocorra a tempo de impedir o extermínio completo de uma população que, contra todas as probabilidades, vem resistindo bravamente há décadas.
Depois de uma programação decepcionante (refiro-me especificamente à mostra competitiva), a Berlinale chegou ao fim com uma lista de premiados que tornou tudo ainda pior. Em um festival repleto de atuações femininas fortes, por exemplo, o júri oficial optou por recompensar a performance não apenas frágil, mas problemática, de Sebastian Stan em A Different Man, encontrando também justificativas absurdas para premiar a direção de Pepe e destacar o juvenil L´Empire, ignorando totalmente obras como Architecton e o iraniano My Favourite Cake e relegando o brilhante austríaco Des Teufels Bad a uma menção por sua “contribuição artística” (no caso, a fotografia de Martin Gschlacht).
Frustrante demais. Por outro lado, foi uma alegria ver os brasileiros sendo reconhecidos em outras mostras do Festival: Juliana Rojas foi considerada a melhor diretora da Encontros por seu Cidade; Campo; o curta Lapso, de Caroline Cavalcanti, recebeu Menção Honrosa na mostra Generation 14plus; e Dormir de Olhos Abertos foi considerado pelo júri FIPRESCI como o melhor filme da Encontros.
Já os premiados da Competitiva foram:
Urso de Ouro
Dahomey, de Mati Diop
Urso de Prata – Grande Prêmio do Júri
A Traveler´s Need (Yeohaengjaui Pilyo), de Hong Sang-soo
Urso de Prata – Prêmio do Júri
L´Empire, de Bruno Dumont
Urso de Prata – Melhor Direção
Nelson Carlo De Los Santos Arias, por Pepe
Urso de Prata – Melhor Roteiro
Matthias Glasner, por Dying (Sterben)
Urso de Prata de Melhor Atuação Principal
Sebastian Stan, por A Different Man
Urso de Prata de Melhor Atuação Coadjuvante
Emily Watson, por Small Things Like These
Urso de Prata – Melhor Contribuição Artística
Martin Gschlacht pela fotografia de The Devil´s Bath (Des Teufels Bad)
E assim concluo a cobertura do Festival de Berlim de 2024; ao todo, foram cerca de 23 mil palavras escritas, mais de 100 stories, três vídeos no YouTube e uma gripe pesada que me derrubou por dois dias.
Agradeço novamente à Casa do Saber por seu apoio à cobertura e aos leitores do Cinema em Cena que contribuíram através de Pix e fizeram parte do grupo fechado no WhatsApp. Vocês não imaginam a importância que a confiança de vocês têm para mim.
Um grande abraço e bons filmes!
29 de Fevereiro de 2024