Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
17/12/2020 | 25/12/2020 | 2 / 5 | 3 / 5 |
Distribuidora | |||
Warner | |||
Duração do filme | |||
152 minuto(s) |
Dirigido por Patty Jenkins. Roteiro de Patty Jenkins, Geoff Johns e Dave Callaham. Com: Gal Gadot, Chris Pine, Kristen Wiig, Pedro Pascal, Robin Wright, Connie Nielsen, Lilly Aspell, Amr Waked, Kristoffer Polaha, Natasha Rothwell, Ravi Patel, Lucian Perez, Stuart Milligan, Oliver Cotton.
Quando a Mulher-Maravilha ganhou sua primeira versão cinematográfica depois de seis décadas de existência, o timing pareceu perfeito ao originar uma franquia protagonizada por uma mulher justamente em meio ao crescimento do movimento #MeToo, que expôs poderosos abusadores em série que pareciam imunes à lei e fortaleceu termos como “empoderamento” e “sororidade” ao mesmo tempo em que escancarava a necessidade de mais oportunidades para mulheres atrás e diante das câmeras. Dirigido por Patty Jenkins, que 14 anos antes havia comandado o intenso Monster – Desejo Assassino apenas para ser marginalizada por Hollywood por algum motivo insondável (cof-sexismo-cof), Mulher-Maravilhav foi um sucesso de crítica e bilheteria, destacando-se em meio ao mediano universo de super-heróis da DC que vinha sendo coordenado por Zack Snyder ao combinar forma e mensagem de modo eficaz e envolvente, usando bem a ação e a fantasia para enfatizar seu subtexto político e social.
Infelizmente, esta continuação demonstra que Jenkins e sua estrela (e agora produtora) Gal Gadot extraíram as lições erradas do sucesso do filme anterior ao acreditarem que trazer o subtexto para a superfície, com a própria personagem passando a se enxergar como modelo de empoderamento (com direito a múltiplas piscadinhas para garotinhas – e para a câmera), seria o suficiente para evocar a força da mensagem. Se antes ela apenas era um símbolo, agora a Mulher-Maravilha faz questão de nos lembrar disso a cada vinte minutos, julgando que se apresentar como um ícone feminista a torna uma heroína, e não o contrário.
Com um roteiro frágil escrito a seis mãos pela diretora, por Geoff Johns e Dave Callaham, Mulher-Maravilha 1984 traz Diana Prince (Gadot) quase setenta anos depois dos eventos narrados no primeiro filme e ainda solitária por não conseguir se libertar da perda de Steve Trevor (Pine). Assim, quando um artefato misterioso chega ao museu em que trabalha para ser avaliado pela tímida e insegura Barbara Minerva (Wiig) e uma inscrição o identifica como capaz de realizar um único desejo de quem o segurar, Diana não contém o impulso de sonhar com o retorno do amado – que, claro, logo ressurge no corpo de um desconhecido. Enquanto isso, Barbara, impressionada com a segurança e a beleza da nova amiga, pede para ser como esta, tornando-se poderosa como a personagem-título, ao passo que o trambiqueiro Maxwell Lord (Pascal) faz o desejo de se tornar o objeto, passando a ser capaz de atender aos pedidos de qualquer um, mas sempre obtendo algo em troca – o que aos poucos traz caos e devastação para o planeta.
A esta altura, depois de ler o parágrafo anterior, qualquer pessoa com o mínimo de discernimento deve estar empacada em um detalhe: como assim Steve “ressurge no corpo de um desconhecido”? A princípio, o recurso pode parecer aceitável ao permitir que um ator carismático retorne à série, já que, mesmo que o personagem esteja em outro corpo, ele surge na tela com o rosto de Chris Pine – um detalhe que o roteiro explica casualmente quando Diana diz “Ele (o outro homem) é ótimo, mas tudo que vejo é você”. No entanto, assim que pensamos na lógica do artifício, a coisa logo se torna repulsiva ao pedir que ignoremos o fato de Diana, esta heroína cheia de princípios, jamais se questionar o que aconteceu com o original (a princípio, presumi que ele tivesse, sei lá, morrido um milésimo de segundo antes de Steve assumir seu lugar, mas... não, tratou-se mesmo de um roubo seguido por estupro – o que, se Mulher-Maravilha 2 fosse um filme melhor, poderia até ser interpretado como um comentário sobre a objetificação feminina e a violência de gênero em vez de ser o que é: uma decisão estúpida, inexplicável e atroz de roteiro).
Para piorar, o longa aproveita a ambientação na década de 80 para criar uma série de piadas óbvias sobre o espanto de Steve diante de escadas rolantes e do futuro esteticamente absurdo daquele período, caprichando nos cabelos armados, mullets, ombreiras, roupas de ginástica hilárias e estilo multicolorido de calças, camisas e sapatos (com direito até a – juro – a velha montagem que traz o sujeito experimentando vários modelos que são sumariamente reprovados por sua companheira). Como não poderia deixar de ser, as gags envolvem também o breakdance, a cultura punk rock e as artes plásticas de modo geral (sim, com direito ao inevitável momento em que Steve confunde uma lata de lixo com uma escultura).
Mais inesperado, considerando o conservadorismo político de certos elementos temáticos que discutirei adiante, é a crítica clara ao reaganismo – tanto em seu louvor ao consumismo quanto em sua obsessão pelo poder econômico e pela hegemonia nuclear. Além disso, vários aspectos do vilão interpretado por Pedro Pascal soam curiosamente familiares, com Max Lord sendo apresentado como um trapaceiro que insiste em se identificar como milionário embora esteja falido e que exibe um cabelo que remete a uma volumosa peruca, demonstrando também fascinação por ouro e uma repulsa patológica pela ideia de ser chamado de “perdedor”. Ah, sim: além de ser visto como uma “personalidade da tevê”. Aliás, as similaridades só são interrompidas graças ao carisma de Pascal, que busca imprimir ao personagem uma dimensão emocional e capacidade afetiva que obviamente faltam a Donald Trump. Da mesma forma, Kristen Wiig incorpora bem o arco de Barbara, da figura insegura e intimidada do primeiro ato à criatura determinada a não renunciar à força que ganhou ao longo da narrativa – uma trajetória que só é prejudicada pela necessidade de justificar sua transformação física no clímax da história para fazer jus ao nome “Mulher-Leopardo” e que os roteiristas falham em vender de maneira convincente. Para completar, ainda que Pine e Gadot recuperem a velha química em determinadas passagens, o filme jamais oferece oportunidades similares às do original para que realmente apreciemos o retorno do personagem (e a protagonista continua a demonstrar carisma e intensidade mesmo demonstrando ser uma atriz medíocre que tropeça sempre que é obrigada a recitar seus diálogos – que, para tornar seu trabalho ainda mais difícil, são geralmente péssimos, indo de “Eu jamais amarei de novo” a “Você só pode ter a verdade e a verdade é bela”).
Ainda assim, Patty Jenkins, sejamos justos, cria algumas sequências memoráveis – como a perseguição em uma estrada isolada no Egito e aquela que traz o casal principal admirando as cores de fogos de artifício através das nuvens (mesmo que demonstre não compreender como radares funcionam ao usar certos poderes da heroína para “disfarçar” o avião). Já o instante em que a personagem-título “descobre” um novo poder acaba se tornando ridículo quando notamos que a atriz parece estar testando várias posições para executá-lo, como se os realizadores não tivessem conseguido determinar qual seria a pose do cartaz e decidissem empregar todas.
Todos os problemas que discuti até agora, contudo, empalidecem diante da resolução ridícula criada por Jenkins e seus co-roteiristas e, principalmente, pela feiura de certo elemento temático da trama. (E sugiro que só leia o restante deste texto quem tiver assistido ao filme, posto que discutirei detalhes que envolvem spoilers.) Como justificar, para começo de conversa, que depois de longos 151 minutos de projeção o roteiro não ofereça consequências reais para nada que acontece durante a projeção? Ninguém é punido de fato por seus maus feitos, toda a destruição provocada pelas ações de Max e Bárbara é revertida com a mesma facilidade com que foi causada (até mesmo com a ressurreição de quem havia perdido a vida no processo) e, no fim das contas, a situação é “resolvida” quando a heroína convence o vilão a se arrepender, o que é no mínimo insatisfatório de um ponto de vista dramático. Além disso, se há algo que aprendemos com as ações egoístas e inconsequentes demonstradas por milhões de pessoas ao longo da pandemia de 2020 é que a ideia de que o mundo poderia ser salvo se todos voluntariamente renunciassem aos seus interesses particulares é mais fantasiosa do que o conceito de uma amazona imortal e indestrutível que depois de décadas de ação descobre subitamente ser capaz de voar. Posso até aceitar que Barbara assuma a forma de uma figurante de Cats, mas acreditar que bilhões de indivíduos seriam unanimemente convencidos a agir em prol do bem comum... não, não dá.
O que nos traz ao detalhe que há pouco classifiquei como “feio”, mas que é infinitamente mais repugnante do que isso: a subtrama envolvendo um personagem árabe que, abordado pelo vilão, faz o desejo de que sua terra se veja livre dos “invasores” – um pedido que imediatamente resulta em caos, destruição e é visto como os primeiros passos rumo ao apocalipse global.
E aqui talvez seja o momento ideal para lembrar que Gal Gadot é israelense, serviu as Forças Armadas do país e é pró-ocupação da Palestina, o que já levou, inclusive, à decisão da jornalista muçulmana Amani Al-Khatahtbeh de recusar um prêmio por seu ativismo ao descobrir que este seria entregue pela atriz.
Maravilha? Não em meu dicionário.
Observação: há uma cena adicional durante os créditos finais que traz uma ponta mais memorável do que as duas horas e meia anteriores.
26 de Dezembro de 2020
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