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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
02/02/2023 21/10/2022 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Disney
Duração do filme
114 minuto(s)

Os Banshees de Inisherin
The Banshees of Inisherin

Dirigido e roteirizado por Martin McDonagh. Com: Colin Farrell, Brendan Gleeson, Kerry Condon, Barry Keoghan, Pat Shortt, Gary Lydon, Jon Kenny, Sheila Flitton, Bríd Ní Neachtain, Aaron Monaghan, David Pearse.

O humor do cineasta anglo-irlandês Martin McDonagh reside nas mágoas de seus personagens. Normalmente carregando feridas emocionais inflamadas, eles sabem mirar com precisão os pontos fracos daqueles que querem atingir – e quando alcançam seu objetivo, o resultado não é satisfação ou alívio, mas a constatação de que a dor se tornou ainda pior. O que não os impede de repetir o ciclo, que eventualmente os conduzirá a atos de violência.


Em Os Banshees de Inisherin, porém, a raiz destas mágoas não é trágica como no ótimo Três Anúncios para um Crime e nem absurda como no medíocre Sete Psicopatas e um Shih Tzu, resumindo-se à decisão racional (e, sim, um pouco cruel) por parte de um homem de meia-idade de romper uma longa amizade. Totalmente ambientado numa ilha na costa irlandesa, o roteiro de McDonagh é construído a partir de pequenos momentos com grande significado e do embate não apenas entre as personalidades da dupla principal, mas do temperamento de todos os demais personagens, que, sem mais nada de significativo para fazer além de se concentrarem diariamente no pub local, se tornam espectadores e participantes involuntários do conflito – o que encontra reflexo no fato de a história se passar em 1923 durante a guerra civil que, provocada por discordâncias em relação ao tratado firmado pouco antes com a Inglaterra pela independência do país, atirou antigos aliados nacionalistas uns contra os outros: “Os caras do Estado Livre vão executar uns rapazes do IRA”, conta um policial em certo momento do filme. “Ou é o contrário? É difícil acompanhar hoje em dia. Não era muito mais fácil quando estávamos todos do mesmo lado e só matávamos os ingleses?

Vividos pela mesma dupla que protagonizou Na Mira do Chefe (ainda o melhor trabalho de McDonagh), Pádraic Súilleabháin (Farrell) e Colm Doherty (Gleeson) também estavam sempre lado a lado até que um dia este último comunica ao primeiro em tom objetivo, mas não totalmente desprovido de tato: “Eu não gosto mais de você”. Se um rompimento brusco como este já seria algo com potencial traumático, para Pádraic significa a destruição completa de sua realidade, já que, além de sua irmã Siobhán (Condon) e da mulinha Jenny, Colm é parte integral de seu cotidiano – e as sobrancelhas expressivas de Colin Farrell parecem se unir quase num gesto de prece diante do que ouve.

Ator frequentemente subestimado (mas que elogio desde os primeiros anos da carreira, com exceção do desastre Alexandre), Farrell traz uma vulnerabilidade essencial ao protagonista ao mesmo tempo em que, aos poucos, leva o espectador a compreender por que sua presença pode ter se tornado tão irritante para o amigo. Sem exibir qualquer ambição além de beber seus canecos diários de cerveja e retornar bêbado para casa, Pádraic é uma alma terna que se contenta em caminhar de um lado para o outro da ilha e manter conversas sem qualquer substância que servem apenas para preencher o tempo até que tenha um infarto (não que ele tenha qualquer pressa neste sentido) – e sua limitação intelectual, mais fruto de desinteresse do que de um déficit cognitivo, pode ser sintetizada pelo vocabulário reduzido: “Você costumava ser gentil. E sabe o que é agora? (pausa) Não gentil.”, ele protesta em certo instante. Pior: em outra cena, ele demonstra ter um repertório de palavras menor que o de Dominic Kearney (Keoghan), um jovem infantilizado pelo abuso doméstico e, provavelmente, por alguma condição não diagnosticada.

Enquanto isso, Brendan Gleeson encarna Colm sem malícia ou indiferença: embora não queira mais ter contato com Pádraic, o sujeito não hesita em ajudá-lo ao vê-lo ser agredido e em vários momentos manifesta lamentar o sofrimento provocado por sua decisão de se afastar. Porém, mais essencial do que isto é constatar como gradualmente conquista a simpatia do espectador ao expor seu receio de partir sem deixar qualquer legado depois de desperdiçar seus anos restantes com diálogos triviais. Sua curiosidade artística, por sinal, é bem ilustrada pelo design de produção, que preenche sua pequena casa com artefatos culturais coletados ao longo das décadas e que se contrapõe ao espaço puramente funcional da sala de Pádraic. Dito isso, McDonagh faz questão de estabelecer que a autopercepção intelectual de Colm é (ao menos em parte) inflada, já que, depois de mencionar Mozart, é corrigido por Siobhán com relação ao século em que o compositor viveu. Aliás, é esta última que, vivida por Kerry Condon, expressa silenciosa e discretamente sua inteligência (emocional, inclusive) ao confortar o irmão, mesmo que seu claro amor por este não oculte totalmente que, em algum nível, concorda com o juízo de Colm sobre Pádraic. Para completar, Siobhán projeta algo que, de uma maneira ou outra, falta a todos os homens da ilha: maturidade. E assim, mesmo que Dominic teste sua paciência, ela não consegue deixar de exibir compaixão ao ouvi-lo fazer determinada confissão – num momento belíssimo também graças à performance de Barry Keoghan.

Vale apontar, por sinal, que é Dominic o primeiro a perceber o resultado da intensificação dos confrontos entre os ex-amigos e que representa uma das grandes tragédias de Os Banshees de Inisherin: a transformação fundamental que ocorre em Pádraic, que abandona a defesa da gentileza como virtude fundamental e se entrega a gestos mesquinhos para atingir Colm - não sendo coincidência que seus figurinos, inicialmente compostos por tons mais quentes, em vermelho, finalmente abracem o azul usado pelo outro.

E é esta a questão central do longa e, de certo modo, uma discussão existencial que escapa dos limites da tela: sim, Colm está correto ao apontar que ninguém é lembrado séculos depois de viver apenas por ser gentil (deixemos de lado, aqui, o fato óbvio de que a gentileza e a busca por um legado não são objetivos excludentes entre si), mas Pádraic, em sua simplicidade cheia de humanidade, tampouco erra ao mencionar como se lembra da doçura de seus pais já falecidos e da irmã.

O que é mais importante, afinal: ser mencionado com reverência por desconhecidos em discussões históricas daqui a 250 anos ou despertar memórias afetivas em nossos filhos, netos e (com sorte) bisnetos durante conversas em eventos familiares 15 ou 20 anos depois de morrermos? Não há resposta definitiva, evidentemente, dependendo das prioridades de cada um – e não tenho dúvidas de que seria agradável deixar algo que marcasse por muitas décadas ou séculos minha passagem pelo planeta.

Mas ao mesmo tempo, embora ninguém fora da minha família saiba quem foi Dona Maria de Lourdes Teonília de Oliveira, não posso evitar pensar em como eu gostaria de deixar, naqueles que conviveram comigo, lembranças tão gostosas e repletas de amor e ternura quanto aquelas que tenho de minha vovó-madrinha.

Para ela, ser “não gentil” nunca foi uma opção.

03 de Fevereiro de 2023

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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