Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
10/02/2023 | 10/02/2023 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
HBO Max | |||
Duração do filme | |||
59 minuto(s) |
Dirigido por Jeremy Webb. Roteiro de Craig Mazin. Com: Pedro Pascal, Bella Ramsey, Melanie Lynskey, Lamar Johnson, Keivonn Montreal Woodard, Jeffrey Pierce, John Getz.
Ainda que nos últimos 15 ou 20 anos elas tenham se reduzido, há diferenças significativas entre as linguagens da Televisão e do Cinema e que dizem respeito à própria natureza de cada mídia e, principalmente, de como são consumidas. A sala de cinema é projetada para intensificar a imersão do espectador no universo diegético da obra, o que inclui não só a escuridão completa, mas o tamanho da tela e a posição do projetor, enquanto a sala de casa, por melhor que seja o sistema de home theater, é mais propensa a permitir momentos de distração. Além disso, há ênfases distintas na duração média dos planos, do tamanho dos quadros e na sutileza permitida na lógica de cores – questões que discuti, por exemplo, neste vídeo publicado há cerca de dez anos.
Há, porém, um problema adicional na análise de séries de televisão: a completude da experiência. Ao discutir um filme, o crítico tem todas as informações necessárias para embasar seus argumentos, pois tudo está contido nas duas ou três horas de projeção; mesmo quando se trata de uma continuação, espera-se de um longa-metragem que consiga se sustentar sozinho. É sempre possível, claro, que falte ao crítico repertório para compreender todas as sutilezas da linguagem adotada, seja por falta de experiência, bagagem teórica ou de conhecimentos sobre áreas específicas que facilitariam a interpretação do significado referencial da obra, mas nestes casos a “responsabilidade” por falhas eventuais da análise caberia ao profissional, não ao filme discutido. Por outro lado, séries de tevê apresentam uma complicação, já que frequentemente é necessário analisar seus episódios isoladamente, sem que a narrativa tenha sido encerrada pelos realizadores – e é por isso que ao escrever sobre produções como True Detective, Westworld, Black Mirror, Sense8, 3 ½, House of Cards, The Leftovers e O Jovem Papa, optei por abordar temporadas inteiras em um único texto (e no caso de Better Call Saul, por exemplo, já havia concluído a série inteira quando dei início à produção dos textos sobre cada episódio).
Com exceção dos posts em meu antigo blog sobre Lost, contudo, The Last of Us representa, salvo engano, a primeira vez em que escrevo sobre uma série à medida em que vejo cada capítulo inédito – uma empreitada que, como eu desconfiava, esbarra na estrutura episódica da produção.
Ao escrever sobre Please Hold to My Hand na última semana, por exemplo, apontei que se tratava do primeiro episódio a chegar ao desfecho com uma sensação de incompletude, de não ter conseguido, como os anteriores, contribuir para o arco geral da narrativa ao mesmo tempo em que contava uma história com começo, meio e fim. Assim, quando Endure and Survive teve início e percebi que pela primeira vez um diretor havia comandado mais de uma parte, tornou-se evidente a razão do problema: embora exibidos separadamente, o quarto e o quinto episódios são duas metades do mesmo capítulo, desempenhando, apenas quando juntos, a tarefa que os três primeiros haviam executado individualmente.
(O restante deste texto contém spoilers.)
Retomando o recurso de iniciar a narrativa com um flashback (algo que apenas Please Hold to My Hand deixou de fazer até agora), Endure and Survive retorna onze dias no tempo para revelar como os rebeldes liderados por Kathleen (Lynskey) derrubaram o regime fascista da FEDRA em Kansas City e por que a mulher se mostra tão determinada a capturar Henry (Johnson) e Sam (Woodard). No processo, testemunhamos também o afeto entre os dois irmãos e por que decidiram surpreender Joel (Pascal) e Ellie (Ramsey) ao fim do quarto episódio. A partir daí, seguimos os personagens enquanto tentam escapar da cidade e são perseguidos por Kathleen, seu braço-direito Perry (Pierce) e os combatentes comandados por estes.
Mantendo o esforço de criar figuras multifacetadas que não possam ser definidas facilmente como heroicas ou vilanescas, o roteiro de Craig Mazin (adaptado, obviamente, daqueles escritos por Neil Druckmann para o game) já de imediato busca humanizar Kathleen ao expor o que houve com o irmão desta, descrito por todos como tendo sido “um grande homem” – e o próprio Henry, responsável pela morte do sujeito, faz questão de escancarar o horror de sua traição: “Eu sou o vilão porque fiz algo que um vilão faria”. Aliás, se há uma característica recorrente entre os personagens de The Last of Us é o modo como expõem não necessariamente arrependimento, mas vergonha por ações passadas (um sentimento já manifestado por Tess, Joel, Bill e, aqui, Kathleen e Henry).
Mas se os adultos têm muito a lamentar, um dos alívios proporcionados pela série diz respeito aos seus personagens mais jovens, que conseguem, apesar de tudo, manter ao menos algum grau de inocência: já vimos, por exemplo, Ellie se encantar como criança ao entrar em um hotel ou em uma caminhonete e, em Endure and Survive, o pequeno Sam externaliza sua visão idealizada do irmão mais velho ao fazer vários desenhos em que o vemos como um super-herói, sendo tocante notar como Henry, para tranquilizar o caçula e fazê-lo se sentir mais confiante, devolve o gesto ao pintá-lo com a máscara vista nas ilustrações. De maneira similar, é encantador perceber como Ellie e Sam imediatamente criam uma conexão que permite que ambos voltem a agir como crianças ao menos por algum tempo – algo cada vez mais raro naquele mundo pós-apocalíptico: “Há muito tempo eu não ouvia isso”, comenta Henry ao escutar os risos do irmão (aliás, o garotinho Keivonn Woodard, que realmente tem deficiência auditiva, encanta com sua expressividade).
Enquanto isso, Pedro Pascal encontra humor nos modos secos de Joel, cujo tom de voz acaba soando ameaçador mesmo sem intenção, e também explora sua humanidade através da expressão de quase súplica que exibe ao pedir que um oponente não tente reagir, o que o obrigaria a executá-lo. Pascal, por sinal, demonstra pela enésima vez um imenso talento para comunicar sem palavras as intenções e motivações do personagem – e embora já tenha visto milhares de planos que trazem algum herói disparando contra inimigos, poucas vezes senti tamanha urgência e desespero quanto ao acompanhar os esforços de Joel para atingir aqueles que ameaçavam Ellie.
O que nos traz à sequência que envolve estas ameaças, que consistem não só dos humanos liderados por Kathleen, mas também de uma horda de infectados que surge do subsolo em um plano assustador que, com a câmera posicionada quase no chão, revela uma explosão de monstros (e a equipe de efeitos visuais – porque fica óbvio que este plano específico envolve criaturas digitais – merece aplausos pelo detalhe do infectado que por duas vezes é derrubado pelos companheiros no meio da confusão, o que ressalta a intensidade e a velocidade do ataque). Além disso, a estratégia narrativa de Craig Mazin e Neil Druckmann, que mantiveram os infectados fora dos dois últimos episódios apenas para supercompensarem esta ausência com as dezenas de zumbis que surgem aqui, é inteligente e bastante eficaz – além de corajosa, já que as redes sociais estavam sendo inundadas por reclamações tolas sobre a ausência das criaturas. Para completar, esta sequência também subverte a posição temática discutida há pouco sobre a inocência das crianças ao enfocar uma pequena infectada que, movendo-se como uma contorcionista, persegue Ellie no interior de um carro, expondo, assim, como ninguém está a salvo do terror daquele universo.
Esta discussão encontra eco, em última análise, na própria Ellie – e a performance de Bella Ramsey em Endure and Survive percorre um arco particular que sintetiza o tema: se durante a maior parte do episódio Ellie tem a chance de agir com a leveza da juventude, brincando com Sam, rindo e sonhando com a companhia do novo amigo pelo resto da jornada, sua inocência também fica patente quando percebemos que ela genuinamente acredita na possibilidade de que seu sangue possa curar a criança da infecção fúngica. Quando esta crença desmorona da pior maneira possível com o ataque de Sam (aproximando da realidade o medo admitido pela garota de ficar sozinha), Ellie sofre um golpe brutal.
E que, pior, é completado pela imagem do suicídio de Henry – e a maior prova de que os realizadores têm consciência plena do tamanho do talento de Bella Ramsey reside na decisão de retratarem o horror da cena apenas pela reação da intérprete, que permite que o espectador registre a dimensão do estrago causado na menina pelo incidente.
Naquele momento – e graças à jovem atriz -, testemunhamos parte do espírito de Ellie morrendo em tempo real. Infelizmente, parece não haver espaço para inocência naquele mundo em ruínas.
11 de Fevereiro de 2023
Os textos sobre os demais episódios de The Last of Us podem ser lidos aqui.
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