Datas de Estreia: | Nota: | ||
---|---|---|---|
Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
05/03/2023 | 05/03/2023 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
HBO Max | |||
Duração do filme | |||
50 minuto(s) |
Dirigido por Ali Abbasi. Roteiro de Craig Mazin. Com: Pedro Pascal, Bella Ramsey, Scott Shepherd, Troy Baker, Ari Rombough, Sonia Maria Chirila, Nelson Leis, Jason Vaisvila.
Nunca confie em alguém que se identifique como “homem/cidadão de bem”; se há algo que a História provou repetidas vezes é que são precisamente as piores pessoas que têm o hábito de frisar o próprio valor moral. Com sua bússola ética apontando sempre para si mesmos, como se suas ideias e ações fossem infalíveis e devessem servir como norte para a humanidade, estes indivíduos têm um talento particular para encontrar justificativas e racionalizações para qualquer postura que adotem, por mais indefensável que esta seja – algo que um personagem comprova em uma conversa mantida ao fim do segundo ato de When We Are In Need, oitavo episódio de The Last of Us.
(O restante deste texto contém spoilers.)
Este personagem é David (Shepherd), líder de uma pequena comunidade de sobreviventes que encontrou abrigo em um velho resort chamado Silver Lake – uma liderança baseada em parte em sua posição de guia espiritual do grupo (mas não só). Surgindo em cena já com uma Bíblia na mão e pregando num templo improvisado em uma velha churrascaria, David projeta serenidade e uma preocupação sincera com seus seguidores, tentando consolar uma garota cujo pai foi morto há poucos dias enquanto buscava comida para os companheiros. O assassino? Um homem acompanhado por uma adolescente. Com isso, o roteiro de Craig Mazin explora – mesmo que superficialmente – um conceito interessante: o de que Joel (Pascal) e Ellie (Ramsey) são os heróis desta história apenas por serem aqueles que seguimos desde o princípio; em uma outra versão, contada sob o ponto de vista dos habitantes de Silver Lake, eles não seriam muito diferentes dos vilões encontrados anteriormente. De todo modo, esta ambiguidade logo é descartada pelos realizadores quando nos damos conta de que David e seus assistentes/capangas diretos são bem piores do que poderíamos supor a princípio.
Se a série já havia explorado formas diferentes de governo como o fascismo da FEDRA, a milícia comandada por Kathleen, o isolacionismo confortável (mas solitário) de Bill e Frank e a utopia comunista de Jackson, aqui é a vez da teocracia assumir o comando, permitindo que uma figura repulsiva assuma o controle por supostamente ter alguma ligação com o divino (e é sempre conveniente para estes líderes que esta conexão espiritual seja aceita apenas a partir de suas palavras, não exigindo nada mais que a capacidade de ler um livro em voz alta, recitar clichês e exigir dinheiro e obediência). Na superfície, David soa generoso e sábio, exibindo uma confiança inabalável de ser capaz de convencer e seduzir qualquer um que lhe empreste dez segundos de atenção – e Scott Shepherd faz um trabalho formidável ao evocar esta arrogância sem permitir que torne o personagem unidimensional. Disposto a adotar métodos mais agressivos quando questionado (uma agressividade que pode ser psicológica ou física), o sujeito ainda expõe seu narcisismo ao usar uma frase típica de quem só consegue enxergar o mundo através do filtro do egocentrismo: “Sabe o que vejo quando olho para você? Eu mesmo.”
Talvez o fato de When We Are In Need trazer um vilão que tem a liberdade de fazer coisas repugnantes graças ao poder que conquistou através da religião tenha sido o motivo para que o cineasta iraniano Ali Abbasi recebesse o convite para estrear na tevê – há, por exemplo, elementos em seu último filme, Holy Spider, que ressoam neste episódio. Seja como for, Abbasi traz uma atmosfera carregada para a narrativa, salientando o isolamento dos personagens através de planos aéreos que revelam a floresta que os cerca, da escuridão e do silêncio da vizinhança abandonada na qual Ellie e Joel se escondem e nas ruas enterradas na neve que compõem Silver Lake (outro belo trabalho do diretor de arte John Paino).
Dito isso, há certa previsibilidade no roteiro de Mazin (fielmente adaptado do game) que compromete parte do impacto que o episódio poderia ter: o canibalismo do grupo de David, por exemplo, já se torna evidente desde o instante, nos minutos iniciais, em que ele hesita ao responder que o corpo do companheiro assassinado será enterrado na primavera, depois que o solo descongelar – e, assim, os esforços para que o espectador inicialmente confie no caráter do pastor são desperdiçados, o que é uma pena. Além disso, apesar da composição inspirada de Shepherd, qualquer nuance ética e moral do personagem se torna inviável quando vemos seus capangas (que conhecem a origem da carne oferecida à comunidade) comendo com nojo enquanto ele devora a comida sem traço algum de resistência. Por outro lado, aprecio como Mazin resiste ao impulso de tratar o espectador como idiota, evitando diálogos descartáveis como “você está queimando de febre” (quando Ellie coloca a mão na testa de Joel) ou “Ellie!” (quando Joel encontra a mochila da garota numa casa do resort). Pode parecer bobagem, mas detalhes como este se tornam profundamente irritantes à medida que surgem em centenas de filmes e séries, sendo um alívio ver um roteirista que não sente necessidade de mastigar tudo para o espectador.
Mais uma vez centrado em Ellie, o episódio não deixa de oferecer a Pedro Pascal a oportunidade de oferecer mais uma performance memorável – e é notável como o ator consegue projetar a exaustão de Joel em função de seu ferimento ao mesmo tempo em que deixa claro como o sujeito permanece perigoso (e aqui podemos ver a faceta cruel e impiedosa que tanta culpa traz a ele e ao seu irmão Tommy). Já Bella Ramsey impressiona ao evocar a juventude e a ingenuidade de Ellie em sua primeira conversa com David, quando começa a se desarmar ao ouvi-lo (demonstrando como a jovem ainda tem facilidade para acreditar no melhor), e também sua fragilidade física ao carregar com dificuldade a espingarda de Joel (o detalhe das bochechas avermelhadas pelo frio também ajuda a torná-la mais infantil, de certa maneira, ao mesmo tempo em que leva o espectador a sentir a temperatura hostil da região). No entanto, o elemento temático determinante de When We Are In Need é a capacidade de Ellie para a violência – aliás, mais do que isso: sua tendência a adotá-la sem ressalvas. Não é à toa que David logo diagnostica este componente da personalidade da jovem, basicamente oferecendo a esta a escolha de aceitá-lo ou combatê-lo (ecos dos dois caminhos oferecidos repetidamente em Kin).
Evitando de forma inteligente o clichê de trazer o herói salvando a jovem em perigo, o episódio cria esta expectativa apenas para comprovar como Ellie jamais deve ser subestimada, derrotando seus algozes não só com seu pensamento rápido, mas ao não hesitar diante de seu lado violento – e a imagem da personagem golpeando David repetidamente enquanto é cercada pelas chamas e coberta pelo sangue do sujeito é chocante e simbólica.
O que torna sua postura diante de Joel, quando se deixa confortar e retorna a uma posição mais infantil, tão tocante quanto o alívio que este sente ao vê-la em segurança e ao abraçá-la, denunciando um afeto que resistiu tanto a aceitar. E ouvi-lo chamar Ellie de “baby girl” se torna ainda mais comovente quando lembramos que usou estas palavras ao abraçar o corpo sem vida da filha anos antes.
E é uma pequena felicidade que Ellie ainda possa devolver o gesto.
08 de Março de 2023
Os textos sobre os demais episódios de The Last of Us podem ser lidos aqui.
(Curtiu o texto? Se curtiu, você sabia que o Cinema em Cena é um site totalmente independente cuja produção de conteúdo depende do seu apoio para continuar? Para saber como apoiar, basta clicar aqui - só precisamos de alguns minutinhos para explicar. E obrigado desde já pelo clique! Mesmo!)